VENTOS de mudança
Vivido de forma diferente nas várias comunidades lusófonas, o 25 de Abril foi para todos uma pedrada nas águas paradas do Estado Novo. A data prenunciou grandes mudanças para todos os territórios que estavam sob o domínio colonial. Veio uma maior liberdade de expressão, adivinhavam-se as independências, mas também guerras fratricidas.A “Revolução dos Cravos” pôs fim ao Estado Novo, mas também significou uma viragem definitiva nas politicas colonialistas que o regime de ferro português vinha impondo. Consequência lógica do movimento dos capitães, o fim da guerra nas colónias foi nestas vivenciado de muitas maneiras. Elementos das comunidades lusófonas residentes em Macau defendem que o 25 de Abril precipitou descolonizações mal preparadas, embora a independência seja hoje um factor de orgulho em todos os casos.
Moçambique recebeu Abril com uma mistura de esperança e natural apreensão. “Esperança do emergir de uma nova e pujante nação, ao mesmo tempo uma grave preocupação, uma vez que as informações recebidas eram pouco rigorosas e até contraditórias”, recorda Helder Fernando, locutor da Rádio Macau.
À altura no Teatro Radiofónico do Rádio Clube de Moçambique, Helder Fernando considera que o golpe militar foi recebido com alegria “por todos os que de um lado ou de outro do terreno, combatiam numa guerra imposta, que rejubilaram incansavelmente quando foram informados de que o movimento conduziria ao fim da guerra”.
Em termos militares, o 25 de Abril levou à desmobilização do exército português, que combatia uma guerra em que já não acreditava. Intensificaram-se os ataques da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) às tropas portuguesas, com dezenas de militares portugueses mortos em combate entre Abril e Maio. Algumas companhias militares, presentes em zonas operacionais no Norte, baixaram mesmo as armas. Factos que, de acordo com Helder Fernando, levaram à “euforia das populações sacrificadas” e também a que “uma fatia importante da população que vivia em Moçambique, principalmente a população branca, mas não só, sentisse com enorme apreensão a ainda desconhecida transformação que se aproximava rapidamente”.
Nos primeiros meses pós 25 de Abril verificaram-se várias indefinições nos centros de decisão, , sobretudo nas forças policiais e militares, “mas não um vazio de poder”, argumenta o locutor. Ao governador-geral imposto por Lisboa sucederam-se, de rajada, três outros governadores em cerca de 4 meses, até serem assinados (em 7 de Setembro de 1974) os acordos de Lusaka, de acordo com os quais as autoridades portuguesas reconheceram formalmente o direito do povo de Moçambique à independência, acordando com a Frelimo a transferência de poderes.
Mas nem tudo foram rosas no pós 25 de Abril moçambicano. Se havia racismo no sistema colonial, a emergência de um regime politico democrático na então “metrópole” não significou o fim das discriminações. Pelo contrário, recorda Adérito Sampaio: “Comecei a sentir-me marginalizado por ser mulato, chegaram a haver situações de humilhação pública, como quando me expulsaram de um autocarro apenas pela cor da minha pele. Nos tempos posteriores a Abril de 74, prevaleceu esta situação, o próprio presidente Samora Machel disse que os mulatos eram como os camaleões, que no tempo dos brancos queriam ser brancos e no tempo dos pretos pretendiam ser pretos”.
A expectativa de Adérito Sampaio era que a tropa portuguesa permanecesse no território mais dois ou três anos após Abril de 1974 “para estabilizar a situação”, mas rapidamente começou a debandada dos militares lusos e os quartéis foram ocupados por forças da Frelimo. Fruto dos tempos que se viviam no mundo, ganhou preponderância uma tendência politica de extrema esquerda. “Queriam apropriar-se da propriedade privada, dos carros e das casas das pessoas. Não havia uma autoridade que impedisse esse saque e a malta começou a sentir-se insegura. Ninguém passeava, as pessoas tinham medo de ser roubadas. A Frelimo não tinha quadros com cultura suficiente para lidar com a situação”, lembra o moçambicano. O resultado foi o caos e a guerra civil, cujos sinais se começaram a antever em episódios violentos como o que Adérito presenciou na Beira, onde vivia, quando, em 25 de Setembro de 1974, uma escaramuça entre elementos da extrema esquerda e grupos mais moderados resultou em vários mortos. Desiludido com o caminho do seu país, Adérito emigrou para Portugal e depois para Macau, onde está desde 1992. Actualmente empregado no aeroporto de Macau, nunca quis regressar à pátria.
Angola: lufada de esperança Em Angola já havia uma certa expectativa relativamente à probabilidade de um golpe em Lisboa que viesse mudar as cartas em jogo, recorda o Cônsul Geral de Angola em Macau. “Tinha estado a falar com um primo sobre a intentona das Caldas, apontando para a hipótese do estabelecimento militar alterar a ordem pública do poder em Portugal. Ele não acreditou nessa possibilidade, mas uns dias depois aconteceu a revolução”, recorda Rodrigo Pedro Domingos.
A primeira preocupação do actual Cônsul-Geral, que na altura vivia em Malanje, foi saber quem estava por detrás do golpe de Estado. Mas as reticências iniciais logo foram ultrapassadas. “Vi logo que havia pessoas interessantes, como Mário Soares e o major Melo Antunes, que tinha sido meu comandante, assim como pessoas ligadas ao Movimento de Libertação do Povo de Angola (MPLA) e democratas portugueses que eu acompanhava através de publicações como a Seara Nova e o Jornal do Fundão”
A participação de reconhecidos democratas levou os angolanos partidários da independência a darem mais credibilidade ao processo, o que foi reforçado pela posição do Movimento das Forças Armadas a favor da descolonização. Nos tempos seguintes ao 25 de Abril, regressaram pessoas que estavam no exílio, tais como o actual presidente da República, José Eduardo dos Santos. “O 25 de Abril representou uma lufada de esperança para os angolanos”, afirma o actual cônsul.
No período imediatamente posterior à revolução, “o grosso da sociedade colonial opôs-se e chegou a haver confrontação física entre civis. Rapidamente se preparou a independência formal, com a ajuda dos comissários que Lisboa nomeava para coordenar o período de transição, que levou à declaração de independência, a 11 de Novembro de 1975.
Referindo que todos os incidentes que marcaram o período revolucionário “se entendem numa perspectiva histórica e distanciada”, o diplomata angolano entende que “a descolonização não foi bem preparada, visto que a doutrina vigente ao longo do Estado Novo era que as possessões africanas não eram colónias, eram províncias ultramarinas”. Ora, continua, “isso não estava em consonância com os ventos da história e com o que defendiam as organizações internacionais e os movimentos de libertação”.
Cabo-Verde: fez-se a festaO período anterior à revolução foi marcante pela negativa, considera o presidente da Associação de Amizade Macau-Cabo-Verde: “Lembro-me que só na minha rua, na ilha de São Vicente, tínhamos dois agentes da Policia Internacional de Defesa do Estado (PIDE). Muitas restrições eram impostas ao povo cabo-verdiano. A liberdade de expressão era limitadíssima, até a liberdade de pensamento – parece que, às vezes, esses agentes da PIDE adivinhavam as nossas ideias. Abundavam também os chamados ‘bufos’, delatores locais a soldo da policia. Havia todo um clima de medo no ar, um controle total. Era feita uma lavagem cerebral, no sentido de levar os cabo-verdianos a acreditarem na politica deles. Faziam-nos crer que os que estavam a lutar pela libertação nacional eram os terroristas e traidores.”
Daniel Silva lembra com pesar que muitos cabo-verdianos foram martirizados e torturados às mãos da PIDE. Face a esse cenário, o 25 de Abril representou uma grande pedrada no charco, de que os locais tiveram conhecimento através da rádio portuguesa.
Mal se soube que o regime ditatorial tinha caído e que ia haver democracia, os cabo-verdianos saíram logo para a rua em plena festa, vivendo intensamente o 25 de Abril. No meio da festa, havia que limpar contas com o passado e verificaram-se represálias contra agentes da policia politica. “Vi alguns populares a interpelarem os agentes da PIDE e os bufos, alguns deles eram padres”, rememora Silva. “Mas os cabo-verdianos são um povo muito brando e não houve mortos a registar.”
Abril é importante na luta pela independência de Cabo Verde. Embora não houvesse resistência armada no arquipélago, a luta independentista desenrolava-se ferozmente na vizinha Guiné-Bissau. Embora em Cabo Verde houvesse uma corrente de opinião que defendia a continuação sob alçada portuguesa, acabou por prevalecer a corrente independentista. “A luta de libertação nacional não ter foi feita nas ilhas, por falta de condições naturais, mas Cabo Verde tinha elementos na Guiné e noutros locais”.
Acontece que, na opinião do dirigente associativo africano, “quando se concretizou a transição para a democracia, o partido único não fez coisas muito diferentes do que tinha feito a policia politica”. A liberdade não chegou logo a Cabo-Verde, diz: “Continuaram as prisões e as torturas. O partido único instalou-se e ditou as regras que os outros tinham de cumprir.”
Mas essa fase foi superada, começaram a surgir partidos e correntes de opinião e impôs-se a necessidade de haver uma liberdade total. “A democracia começou a nascer em força e tenho o orgulho de dizer que neste momento somos uma das melhores democracias do mundo”, refere, satisfeito.
São Tomé e Príncipe: acabou a guerra!A consequência directa da revolução portuguesa mais sentida em São Tomé foi o fim da guerra e o facto de os jovens santomenses terem deixado de ter que fugir à tropa e aos conflitos coloniais. “Muitos foram para a guerra matar outros africanos, outros acabaram por se viciar em droga enquanto estavam no exército”, relembra Adalberto Tenreiro, um santomense radicado em Macau.
Foram imensos os jovens que procuraram sair de São Tomé para evitar o recrutamento, entre eles um dos irmãos de Tenreiro, que partiu para o Canadá.
As repercussões de Abril não conduziram a conflitos armados naquele arquipélago tropical, mas foram um passo decisivo para as nacionalizações das roças. Do ponto de vista económico, a descolonização significou a debandada dos técnicos qualificados que trabalhavam nas propriedades agrícolas e a consequente quebra abrupta na produção de cacau e café. A responsabilidade é atribuída pelo arquitecto ao sistema colonial e aos portugueses, “que não prepararam a sociedade civil, nem proporcionaram uma educação adequada à população”.
Timor – Leste: políticos superam IgrejaDe acordo com Agostinho Pereira, o impacto do 25 de Abril no longínquo Timor-Leste não foi imediatamente sentido por parte da população civil, que permaneceu tranquila. Apenas entre os militares portugueses se sentiu agitação.
Mas mudanças subtis começaram a ocorrer, com um maior sentimento de liberdade a prevalecer e os partidos políticos a expressarem-se mais livremente. “Os políticos, que puderam expressar melhor as suas ideias, manipularam a população e passaram a falar mais alto do que a Igreja, que era uma força muito conservadora, mas não conseguia dinamizar os católicos
Depois da Revolução dos Cravos verificou-se a saída precipitada das tropas portuguesas, em Agosto de 1975, tendo o poder sido entregue à Frente Revolucionária de Timor-Leste (Fretilin), que proclamou a independência em 28 de Novembro. Mas foi sol de pouca dura, visto que as tropas indonésias invadiram a ilha apenas uns dias depois, numa ocupação que resultou num longo massacre de timorenses, terminado graças às pressões diplomáticas dos países lusófonos, agora já independentes, que em 2002 receberam o seu mais novo membro.
P.B. (Hoje Macau)
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