BETO Ritchie não gosta de ser rotulado como brasileiro, macaense, português ou americano. “Um australiano ouve o meu sotaque e acha que sou americano, um português já acha que sou brasileiro...Sou macaense, sou português, nasci no Brasil, a minha mãe é de Portugal, o meu pai é de Macau, fui criado no Brasil. Mas isso não me interessa, eu não gosto de ter que escolher de que país quero ser”, conta o músico de 29 anos.
Regressado a Macau há seis meses por vontade própria, Beto Ritchie já correu mundo. Colocou no perfil do Messenger (programa de mensagens instantâneas online) uma espécie de roteiro que resume as grandes andanças da sua vida: Brasil; Estados Unidos; China; Estados Unidos; Brasil; China. Plasticidade biográfica que se revela quando o músico fala, misturando quase sempre na mesma frase o inglês com o português. Nascido em São Paulo, Beto apenas permaneceu na metrópole brasileira até aos oito anos. A família emigrou para Miami, onde viveu durante cinco anos, até que, em 1993, o furacão Andrew dizimou aquela cidade norte-americana e os Ritchie decidiram ir para Macau. Vindo da capital da Florida, o adolescente detestou os primeiros tempos de Macau, mas foi aí que a música começou a ganhar preponderância na sua história. Através do violão e da bateria, foi ultrapassando a estranheza e o isolamento iniciais. De sítio execrado, Macau virou a recreio: “Comecei a tocar em várias bandas. Entre 1993 e 1998, na época que marcou o fim da administração portuguesa, foram anos inesquecíveis. Não trocaria passá-los em nenhum outro sítio. Fiz muitos amigos aqui, andávamos de skate e tocávamos música todo o dia”, relembra Beto.
A música foi algo que aprendeu essencialmente de forma autodidacta. Tudo começou aos 10 anos, quando o pai lhe ensinou quatro acordes. Por essa altura, o irmão, que é um ano mais velho, interessou-se também pela música. “Isso foi uma sorte”, recorda Beto. “Aprendemos muito um com o outro. Ele tocava mais guitarra e eu comecei por ter maior interesse na bateria. Por causa do meu irmão, aprendi mais rápido e cresci como músico”.
O quarto que partilhava com o irmão passou a ser uma espécie de sala de ensaios da juventude alternativa de Macau. Juntamente com o irmão e com um grupo de 10 músicos, que ainda hoje tocam, começou a participar nas jam sessions que decorriam às sextas-feiras no extinto Jazz Club, localizado perto da Igreja de São Lourenço. Ali tocavam-se standarts de jazz. Quando os promotores do espaço perceberam que havia uma nova geração com interesse naquele género, fizeram um workshop de Jazz com um professor vindo de Portugal. Experiência que resultou numa banda jazística formada por alunos e professor. Essa fase ainda hoje é lembrada como “o pico” do tempo passado em Macau por Beto, quando “a cidade tinha muito movimento cultural e havia sempre coisas para fazer, com muitos concertos, festas e uma comunidade muito maior de portugueses.”
A época de ouro findou com a conclusão dos estudos liceais, quando o jovem partiu para a Califórnia, onde ficou nove anos. A faculdade foi feita na Universidade de Berkeley, onde estudou Ciência Cognitiva, uma área que mistura psicologia, com linguística, filosofia neurociências e também matérias relacionadas com inteligência artificial. Quando terminou, Beto mudou-se para Los Angeles, onde arranjou emprego numa área pouco ou nada relacionada com aquilo que tinha estudado. Trabalhava em Beverly Hills numa empresa de produtos capilares frequentada por celebridades de Hollywood, para a qual cuidava de aspectos logísticos e acabou por preparar uma base informática de dados. A experiência foi compensadora, mas o músico cansou-se da vida na cidade dos anjos, pois “achava as pessoas muito sozinhas”.
Após 19 anos longe do Brasil (onde só ia passar férias), Beto quis voltar, até porque os seus pais tinham entretanto regressado a São Paulo. Ficou na maior cidade brasileira durante cerca de um ano, trabalhando para o pai e também por conta própria. Comercializava software na Internet, principalmente um programa de segurança, que ainda hoje vende. Na sequência decidiu fazer uma longa viajem de revisitações e descobertas. Passou por Macau, esteve um mês em Pequim, viajou pela China e depois esteve em Portugal cinco meses, onde ajudou a remodelar um hotel que a irmã e cunhado abriram no centro histórico de Évora. O Verão de 2007 foi passado a percorrer a o velho continente. De todo o périplo, as cidades que mais o marcaram, e onde se via a morar com facilidade, foram Pequim e Barcelona.
Quando chegou a altura de pensar em assentar, o guitarrista quis voltar para Macau porque queria ver se o estilo de vida era como dantes e como seria viver na RAEM mais velho e já inserido no mercado de trabalho. “Concluí que não. Macau mudou muito, mas os estrangeiros estão aqui por dinheiro e por causa da abertura dos casinos. Ficou muito mais Las Vegas, mas essas pessoas que vieram não sabem interagir com a comunidade local”, comenta. O resultado é que, na sua opinião, culturalmente Macau andou para trás em relação ao que era nos anos 90. “Há menos coisas a acontecer, menos bares, porque os bares que estão nos casinos não foram feitos para as pessoas de cá, funcionam para os turistas”. Outro motivo de retrocesso é que “hoje parece que as pessoas não têm ideologia”, diz Beto: “Não acreditam em nada e não se mobilizam profundamente por coisa nenhuma. Os casinos e o dinheiro subiram à cabeça de muita gente. Em Macau e em Hong Kong a vida é fácil e as pessoas têm tendência a acomodar-se. Não têm que lutar por nada. Lutar faz as pessoas mais fortes.”
Em Macau, Beto trabalha na empresa Culia Solutions, para a qual faz programação e desenvolvimento dos negócios das empresas que fazem parte do grupo MKW (ao qual a Culia pertence), tais como as Páginas Amarelas e a Macau.com. O “day job” absorve-o e acaba por sobrar pouco tempo para tocar e divulgar a sua música, “algo que em Macau não é fácil, visto que há poucos lugares para tocar”.
Longe vão os tempos em que o músico participou na compilação de bandas de punk-rock “Made in Macau”, editada em 1996. Hoje, continua a gravar, mas deixa na gaveta. Toca em bares e festas e ultimamente era presença certa no bar Che Che, onde podia ser ouvido todos os domingos. Passará em breve a apresentar-se regularmente numa galeria-bar, que está prestes a abrir na cidade.
Observando que há músicos chineses que querem dar concertos em Macau mas não têm espaços e que antes havia mais lugares para alguém que gostava de música e de cultura alternativa, Ritchie planeia criar um bar rockabilly em Macau, “para acrescentar à vida nocturna e cultural”. Está à procura de pessoas que adiram a esta ideia e que achem importante ter esse espaço, onde a música ao vivo seria apoiada.
Os projectos para o futuro passam por aprender mandarim e usar Macau como uma espécie de base logística. “Macau sempre foi uma plataforma para mim e até para o meu pai, que é macaense e que sempre volta cá, até porque o negócio dele é entre Brasil e China”. Analisando o potencial da China, onde “as pessoas já pararam de copiar os ocidentais e estão a inovar”, o guitarrista pensa que se dominar o português, o inglês e o mandarim poderão abrir-se muitas oportunidades.
PB (Foto: António Falcão)
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