UM mundo com a coluna deslocada
Texto sobre Charles Bukowski, por Henrique Fialho (in Rascunho.net)
"Se há escritores cujo nome se transformou num conceito, Charles Bukowski (n. 1920 – m. 1994) é um deles. Designar algo de bukowskiano pode significar muita coisa, mais ainda se tivermos, como muitos leitores terão, uma ideia mitológica do homem. Se assim for, arriscamo-nos a contaminar a leitura com o mito. Nos tempos que correm, ressaca dos tempos que Charles Bukowski viveu, o mito alimenta-se da iconografia disponível. Uma coisa é construirmos em torno de um nome uma imagem, outra coisa é construirmos uma ideia em torno da imagem que temos do nome. E as imagens de que dispomos com Charles Bukowski a agredir a mulher durante a filmagem de um documentário, ou perdido de bêbedo no decorrer de um célebre programa televisivo francês para o qual havia sido convidado, fundamentam não só a ideia de um escritor rebelde, como tantos outros, de um maldito, como outros tantos, mas a de um homem diluído na sua própria obra. Entre as imagens daquele homem concreto e os movimentos de Henry Chinaski, o alter-ego literário do homem-escritor − de seu verdadeiro nome Heinrich Karl Bukowski, Jr. − não resta qualquer diferença. Sendo assim, alguns tenderão a associar o conceito de bukowskiano a um certo autobiografismo hiper-realista. Creio, no entanto, que ele é algo mais.
Peguemos neste “Correios” (Antígona, Abril de 2010), primeiro romance do autor norte-americano, publicado originalmente em 1971, agora traduzido para português por Rui Lopes, e atentemo-nos às pertinentes palavras de Gerald Locklin, autor do prefácio: “afastado do ‘cânone oficial’, mas destinado a ser um membro permanente de um cânone alternativo, ao lado do Marquês de Sade, de Henry Miller, de Anaïs Nin, e de outros que espalharam a sua verdade, quer esta ofendesse quer não as elites culturais, sem se importarem com a aprovação ou com o sentimento de ofensa dos professores” (p. 10)… Eis um dos riscos clássicos da chamada contracultura: vir o tempo a elevá-la, ou a rebaixá-la, conforme as perspectivas, ao nível da cultura. Não se trata aqui de apanhar a carreira do estatuto, nem de renegar um estatuto que se tem por adquirido à nascença, não se trata de agir em confronto com o poder tendo em vista a tomada do poder, trata-se de ser apanhado pelo próprio veneno, como uma criatura autofágica que perante o olhar dos outros se vê numa espécie de comboio para o qual não comprou bilhete.
Vítima de maus-tratos na infância, bexigoso, refugiado no álcool e na literatura, Bukowski cursou jornalismo e letras. Não era propriamente um desses vagabundos entre os quais o seu alter-ego se sentia como peixe na água. O ostracismo paterno, o desamparo, a necessidade de sobrevivência, obrigou-o a várias e esforçadas ocupações. Começou a trabalhar nos correios em 1952, interrompendo um período de três anos devido a uma úlcera, para regressar, em 1958, com novas funções. Por lá andou durante doze anos, acumulando com os primeiros poemas, crónicas e contos em revistas marginais (ou quase). Foi apanhado pela corrente beat e deixou-se arrastar, demarcando-se sempre de toda e qualquer tentativa de associativismo que lhe usurpasse aquilo que mais lhe custou a construir: uma identidade própria. Essa identidade revela-se numa escrita directa, sem subterfúgios, prolífica em situações caricatas, burlescas, mas também comovente na forma quase ingénua como procura dissimular as emoções e uma incomodativa sentimentalidade.
Ler Charles Bukowski é como ouvir à mesa do café as histórias de um desses homens que procuram disfarçar a dor com o riso, que tentam afastar do corpo os fantasmas de uma existência consciente de ser absurda, que perante a iminência das lágrimas travam o sal dos olhos com mais um copo bebido de penálti.“Correios” relata, nesse estilo inconfundível – que outra ambição pode ter um escritor? – a passagem de Henry Chinaski pelo funcionalismo público. Primeiro, como carteiro substituto; depois, como carteiro efectivo; por fim, como funcionário administrativo. Pelo meio, muitas mulheres, corridas de cavalos, casamentos, divórcios, o nascimento da filha, um código de conduta sucessivamente mandado às malvas. Entre outros, dois aspectos em que esta escrita se mostra genial: a brutalidade das descrições leva-nos a atribuir um valor muito mais significativo a atitudes movidas por virtudes arredadas de um mundo gerido por hipócritas.
Palavras como coragem e decência, num contexto em que a pessoa humana está ao nível do cão, já não são pormenores moralistas ou moralizantes, são a âncora que resgata dos seres humanos o que lhes sobra de humanidade entre a selvajaria a que estão sujeitos. Depois a auto-ironia, a capacidade de construir uma auto-imagem que se dá de beber ao público, levando-o a mergulhar na lama já sem a auréola que Baudelaire havia retirado da cabecinha do escritor. Bem sei que em era de hi5 e de Facebook, o mundo é todo um Photoshop em incansável actividade. A imagem que geralmente oferecemos de nós aos outros, uma imagem de gente séria e sensual, de gente bonita e alegre, agradável e amorosa, determinada e elegante, em pose intelectual e edificante, é apenas mera imagem. A limpar o cu, somos quase todos iguais. E ainda que a vida não se resuma a esse gesto, não se chame a isto uma extrema simplificação da vida. Dizê-lo por estes dias dá sentido à contracultura, mesmo que saibamos do risco a que estamos expostos.
Tornarmo-nos cultos."
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