A crise do "abaixo do melhor" explicada a leigos
"O que liga uma família de um subúrbio de uma cidade dos EUA a outra família de uma qualquer cidade portuguesa? Hoje a pergunta já não é absurda. Foi há um ano que começou, remotamente, um turbilhão de acontecimentos que haveriam de lhe dar sentido.
O primeiro sinal surgiu com a nótícia de que dois fundos de um banco americano, especializados em investimentos em produtos financeiros correlacionados com o crédito à habitação nos EUA tinham ido à falência. O facto correu o Mundo. Mas na altura era impossível alcançar a sua importância.
Para o perceber é preciso recuar no tempo. Entre 2001 e 2004 os EUA gozaram de juros historicamente baixos, que enfraqueceram as defesas da banca contra o risco. O crédito chegou a toda a gente, mesmo a quem não tinha condições para o pagar. O tal segmento "subprime", "abaixo do melhor", agora de má fama. Os grandes financeiros de Wall Street entretiveram-se a transformar essas hipotecas em produtos de investimento, com selo de garantia das agências de "rating", que vendiam a grandes investidores, esperançosos num juro acima da normalidade. Até os próprios bancos, dos dois lados do Atlântico, tomaram o veneno.
Quando o preço do dinheiro começou a subir, as famílias mais desprotegidas dos subúrbios americanos entraram em incumprimento, devolvendo as casas. O valor do imobiliário caiu, primeiro devagar, depois de forma abrupta, esvaziando a bolha criada por anos de dinheiro barato. Os produtos de investimento correlacionados às hipotecas deixaram de ter comprador e o seu valor ficou reduzido a zero. Lixo. Tal como os dois fundos da Bear Stearns, que colapsaram faz hoje um ano.
Sem norte, os investidores em obrigações abandonaram o mercado de crédito e deixaram de aceitar ficar com a dívida dos outros, fossem eles famílias ou empresas. Os bancos, que escondiam dos balanços estes investimentos exóticos, vieram aos poucos reconhecer o pecado. Não a tempo de evitar a desconfiança dos seus pares, que deixaram de querer emprestar dinheiro entre si. Ou então passaram a exigir um prémio de risco muito mais elevado.
A ilusão do dinheiro abundante foi a primeira a ruir. De um momento para o outro, o apetecido metal tornou-se um bem escasso e logo caro. Quem paga crédito tem cada vez mais dificuldades em esticar o orçamento até ao fim do mês. E há quem vaticine que não voltaremos à abundância do passado.
Por esta altura, já se adivinhava o efeito do consumo das famílias e nos lucros das empresas de um crédito mais alto. Recessão ou abrandamento económico era a dúvida. Que subsiste. Nas bolsas de todo o mundo a retracção dos lucros e a vâ esperança de uma resolução rápida ditava ora quedas violentas, ora fulgurantes recuperações. A volatilidade passou a ser o prato do dia.
Acossados, os investidores viraram-se para os activos que prometiam retornos: as matérias primas. Que então já vinham registando fortes valorizações nas principais bolsas de mercadorias, impulsionadas pelo apetite voraz das indústrias dos países emergentes. Estrangulado por uma oferta limitada, o petróleo seria a "commodity" mais especulada. Num ano, saltou dos 70 para os 140 dólares. Um novo choque petrolífero. Mas bem diferente de há 30 anos atrás, quando o barril disparou por razões não exclusivamente geopolíticas. Desta vez, sobe porque o petróleo não voltará a ser abundante (nem as gasolinas baratas) e por causa da especulação.
Outras matérias primas, que não suspeitávamos que fossem transaccionadas e "preçadas" num mercado de capitias, subiram a pique. Arroz, trigo, milho e soja, os cereais e oleaginosas que constituem a base da alimentação nos quatro cantos do planeta, galgaram para valores recorde, provocando fome e especulação. O receio de escassez foi mais uma vez o mote. A comida barata pertence ao passado.
Como qualquer crise, esta tem os seus culpados: os bancos, as agências de 'rating', os supervisores, os especuladores, as petrolíferas, os biocombustíveis, os políticos... Tem os seus heróis e vilões, gente da alta finança que acabará no argumento de um realizador americano, ajudando o povo a fazer a catarse. Tem lições a dar sobre a supervisão da banca e a necessidade de cooperação global.
Como qualquer crise, esta espicaçará o engenho e criará oportunidades, por exemplo para o transporte público ou o nuclear. E não será certamente a última. Num bairro de uma qualquer cidade portuguesa ou de um qualquer subúrbio americano, outro 'subprime' há-de ser servido como tema de conversa à mesa de um jantar difícil de digerir."
Artigo de André Veríssimo, publicado no Jornal de Negócios de 18/7/08
O primeiro sinal surgiu com a nótícia de que dois fundos de um banco americano, especializados em investimentos em produtos financeiros correlacionados com o crédito à habitação nos EUA tinham ido à falência. O facto correu o Mundo. Mas na altura era impossível alcançar a sua importância.
Para o perceber é preciso recuar no tempo. Entre 2001 e 2004 os EUA gozaram de juros historicamente baixos, que enfraqueceram as defesas da banca contra o risco. O crédito chegou a toda a gente, mesmo a quem não tinha condições para o pagar. O tal segmento "subprime", "abaixo do melhor", agora de má fama. Os grandes financeiros de Wall Street entretiveram-se a transformar essas hipotecas em produtos de investimento, com selo de garantia das agências de "rating", que vendiam a grandes investidores, esperançosos num juro acima da normalidade. Até os próprios bancos, dos dois lados do Atlântico, tomaram o veneno.
Quando o preço do dinheiro começou a subir, as famílias mais desprotegidas dos subúrbios americanos entraram em incumprimento, devolvendo as casas. O valor do imobiliário caiu, primeiro devagar, depois de forma abrupta, esvaziando a bolha criada por anos de dinheiro barato. Os produtos de investimento correlacionados às hipotecas deixaram de ter comprador e o seu valor ficou reduzido a zero. Lixo. Tal como os dois fundos da Bear Stearns, que colapsaram faz hoje um ano.
Sem norte, os investidores em obrigações abandonaram o mercado de crédito e deixaram de aceitar ficar com a dívida dos outros, fossem eles famílias ou empresas. Os bancos, que escondiam dos balanços estes investimentos exóticos, vieram aos poucos reconhecer o pecado. Não a tempo de evitar a desconfiança dos seus pares, que deixaram de querer emprestar dinheiro entre si. Ou então passaram a exigir um prémio de risco muito mais elevado.
A ilusão do dinheiro abundante foi a primeira a ruir. De um momento para o outro, o apetecido metal tornou-se um bem escasso e logo caro. Quem paga crédito tem cada vez mais dificuldades em esticar o orçamento até ao fim do mês. E há quem vaticine que não voltaremos à abundância do passado.
Por esta altura, já se adivinhava o efeito do consumo das famílias e nos lucros das empresas de um crédito mais alto. Recessão ou abrandamento económico era a dúvida. Que subsiste. Nas bolsas de todo o mundo a retracção dos lucros e a vâ esperança de uma resolução rápida ditava ora quedas violentas, ora fulgurantes recuperações. A volatilidade passou a ser o prato do dia.
Acossados, os investidores viraram-se para os activos que prometiam retornos: as matérias primas. Que então já vinham registando fortes valorizações nas principais bolsas de mercadorias, impulsionadas pelo apetite voraz das indústrias dos países emergentes. Estrangulado por uma oferta limitada, o petróleo seria a "commodity" mais especulada. Num ano, saltou dos 70 para os 140 dólares. Um novo choque petrolífero. Mas bem diferente de há 30 anos atrás, quando o barril disparou por razões não exclusivamente geopolíticas. Desta vez, sobe porque o petróleo não voltará a ser abundante (nem as gasolinas baratas) e por causa da especulação.
Outras matérias primas, que não suspeitávamos que fossem transaccionadas e "preçadas" num mercado de capitias, subiram a pique. Arroz, trigo, milho e soja, os cereais e oleaginosas que constituem a base da alimentação nos quatro cantos do planeta, galgaram para valores recorde, provocando fome e especulação. O receio de escassez foi mais uma vez o mote. A comida barata pertence ao passado.
Como qualquer crise, esta tem os seus culpados: os bancos, as agências de 'rating', os supervisores, os especuladores, as petrolíferas, os biocombustíveis, os políticos... Tem os seus heróis e vilões, gente da alta finança que acabará no argumento de um realizador americano, ajudando o povo a fazer a catarse. Tem lições a dar sobre a supervisão da banca e a necessidade de cooperação global.
Como qualquer crise, esta espicaçará o engenho e criará oportunidades, por exemplo para o transporte público ou o nuclear. E não será certamente a última. Num bairro de uma qualquer cidade portuguesa ou de um qualquer subúrbio americano, outro 'subprime' há-de ser servido como tema de conversa à mesa de um jantar difícil de digerir."
Artigo de André Veríssimo, publicado no Jornal de Negócios de 18/7/08
Etiquetas: Economia, Jornalismo, Política
0 Comentários:
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial