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QUEM chega a Veneza por comboio tem a sensação estranha de deixar terra firme, à medida que a composição passa a circular por uma ponte quase ao nível da laguna. Durante cerca de quatro quilómetros só se vê água e uma ou outra ilhota desabitada, até que começa a vislumbrar-se um espaço densamente edificado e se entra na mítica cidade que levou Ernest Hemingway a perguntar “por que é que se vive em Nova Iorque quando existe Veneza?”.
Logo à primeira vista torna-se clara a existência duma singularidade que faz deste local um dos mais magníficos jamais criados pelo Homem. Mas os diversos angariadores de clientes para hotéis com preços exorbitantes – que abordam o visitante logo que este pisa a estação da cidade – não deixam enganar por muito tempo: tudo está inflacionado e virado para a exploração do turista. Este é o outro lado de Veneza, o menos romântico, com que todos os visitantes terão de conviver.
Resolvida a questão do alojamento, é altura de iniciar o passeio, tendo como norte e destino a famosa Praça de São Marco. Não interessa o caminho mais curto e os mapas podem ficar guardados no bolso. Quem se deixar perder pelos labirínticos becos e ruelas poderá observar os mais inimagináveis recantos, inesperados largos e igrejas, edifícios notáveis carcomidos pela humidade e pelo tempo, num equilíbrio aparentemente instável e, claro, os imensos canais. A caminho de São Marco, um ponto de referência merece paragem mais demorada: a Ponte Rialto. Construída em 1592 por Antonio da Ponte, esta estrutura arqueada de pedra atravessa o Grande Canal e, tal como a florentina Ponte Vecchio, alberga diversas lojas.
No Grande Canal o movimento de barcos chega a ser intenso. Estende-se por cerca de quatro quilómetros e divide a cidade em duas partes, constituindo-se como a sua maior via de comunicação, para onde convergem 45 canais navegáveis. Além da Rialto há outras duas pontes que atravessam o Grande Canal: Scalzi e Academia. Nas suas margens ficam alguns dos mais sumptuosos palácios – o Giovanelli, o Vendramin-Calergi e o Grimani, entre muitos outros - e igrejas de Veneza, construídos de acordo com diversos géneros arquitectónicos (com especial incidência nos estilos gótico, barroco e renascentista) durante a época áurea da cidade.
A CAPITAL DO MUNDOA riqueza que deu origem à sumptuosidade de Veneza – que, segundo historiadores, se mantém praticamente com o aspecto que tinha no século XIII – remonta ao século V, quando os primeiros habitantes ali se refugiaram das invasões bárbaras e começaram a formar aquilo que seria um poderio naval e comercial. Beneficiando de uma excelente posição estratégica e do papel que desempenhou durante as Cruzadas, a Cidade-Estado de Veneza controlou as rotas do Oriente, donde importava especiarias como a pimenta, produtos de tinturaria (a tintura de roupas e tecidos foi um monopólio dos artesãos venezianos até à descoberta da América) e perfumes. Organizadas em corporações, as ricas famílias de mercadores da cidade fizeram dela uma das principais exportadoras de produtos em ouro, prata, madeira, tecidos e ferro. Outras das indústrias que mais floresceram foram as da construção naval e do famoso vidro da região. Pode dizer-se que, do século IX ao XIV, Veneza foi uma das potências dominantes do mundo, uma grandeza que ainda se pode contemplar, embora as indústrias tenham acabado ou sido transferidas para a terra firme da outra margem da laguna, onde se instalaram grandes complexos petroquímicos. Hoje Veneza continua a ser a capital do Véneto, uma região que engloba uma boa parte da planície do rio Pó e dos Alpes italianos ocidentais, assim como as cidades de Pádua, Treviso, Verona e Vicenza.
MAGNÍFICA SÃO MARCO Continuando a calcorrear a cidade, atravessada a Ponte Rialto, o número crescente de lojas e de turistas indicam que nos estamos a aproximar do centro incontestado: a Praça de São Marco. Mal comparado, esta praça é uma espécie de Terreiro do Paço lisboeta, mas, em vez do trânsito e dos ministérios, por debaixo das arcadas das Procuratie (construídas entre os séculos XV e XVI) encontramos lojas, cafés e restaurantes de luxo, com mobiliário de época e esplendorosos lustres feitos com vidro de Murano. As mesas destes ancestrais cafés – o primeiro abriu em 1683 – respiram história. Foram as favoritas de alguns dos grandes nomes da literatura e da música, como Lizt, Wagner, Balzac e Goethe, entre muitos outros.
Quando se entra na praça o olhar desvia-se quase inevitavelmente para a incrível Basílica de São Marco e para o campanário laranja com cem metros de altura, donde Galileu terá testado o seu telescópio. O interior da Basílica tem a forma de uma cruz grega, com cinco grandes cúpulas, uma em cada ponta e a maior no centro da cruz. O templo é um mostruário único da história do cristianismo e das suas ligações com os poderes que governaram a Cidade-Estado, já que era ali que os soberanos – doges – eram empossados.
Contígua à praça, na direcção do Grande Canal, fica a Piazzetta de São Marco, onde se encontra a Biblioteca Marciana e o Palácio dos Doges. O palácio, residência dos duques e sede do Governo, terá começado a ser construído no século IX, altura em que se assemelhava mais a um castelo, servindo como fortaleza militar. Tomou as actuais dimensões a partir do século XII, caracterizando-se pela simplicidade das suas linhas góticas. No entanto, o interior do palácio – aberto a visitas – é tudo menos depurado e demonstra o fausto em que ali se vivia.
Junto ao palácio ficam as margens do Grande Canal e um larguíssimo passeio público (coisa rara), chamado riva degli Schiavoni, com as gôndolas e o Mar Adriático no horizonte. É uma das passeatas mais típicas de Veneza e costuma ser fervilhante de movimento. Lá se podem encontrar à venda toda a espécie de bugigangas e recordações turísticas relacionadas ou não com a cidade, como pólos de equipas de futebol ou Ratos Mickey dançantes.
Quando cai a noite é tempo de regressar à Praça de São Marco. Nas arcadas alguns cafés têm bandas privativas com músicos de grande nível, que interpretam reportório clássico ou jazz. Devidamente engravatados, os músicos vão tocando para a pouca audiência sentada nas esplanadas e para as pequenas multidões que passam e param, mas que evitam sentar-se, talvez devido aos preços praticados. Alheias à música e sem cerimónia, milhares de anafadas pombas – as habitantes mais características da praça – vão debicando milho das mãos dos turistas.
CONSTANTES SURPRESASSe já viu São Marco não pense que deve dar por concluída a visita. Veneza não pára de surpreender. Ao virar da esquina há sempre um pormenor a reter, um novo quarteirão a descobrir. Como não há automóveis, os barcos assumem o papel de transporte público. Existem lojas de artigos para barcos e estaleiros destinados à sua reparação. Muitas das casas têm garagens pessoais para embarcações e portas apenas acessíveis pela água dos canais. Outras lojas típicas são as das belíssimas máscaras de porcelana usadas todos os anos durante o célebre Carnaval da cidade..
No plano cultural há dois eventos com eco internacional: o famoso Festival de Cinema, que costuma realizar-se entre os meses de Agosto e Setembro e a Bienal de Arte, que decorreu este ano, entre Junho e o início de Novembro. A própria cidade é um repositório de relevantes obras de arte, distribuídas por museus, academias, palácios, igrejas e galerias. O panorama geral da pintura veneziana entre os séculos XIV e XVIII pode ser apreciado na Galeria da Academia de Belas Artes, onde estão patentes obras de Carpaccio, Giovanni Bellini, Canaletto e Paolo Veronese, entre outros. Em termos de arte contemporânea, a mais significativa colecção exibida em Itália está na Fundação Guggenheim, instalada no Palácio Venir dei Leoni. Ali se podem ver quadros de Picasso, Duchamp, Max Ernst, Magritte e Pollock.
Mas, para se ter um quadro vivo de Veneza, o melhor será um passeio nas pitorescas gôndolas ao pôr-do-sol, quando se podem observar os reflexos de luz incidindo nos canais e as cortinas esvoaçantes como sombras nas janelas.
BarómetroPositivo
O facto de ser uma cidade de uma beleza esplendorosa, cheia de surpresas a cada recanto.
Negativo
Trata-se de um dos locais do mundo com mais turistas por metro quadrado. Também por isso é um sítio caro.
Perguntas frequentes
Localização geográfica: Veneza fica no Norte de Itália, próxima dos Alpes italianos e das fronteiras com a Eslovénia e com a Áustria. É capital do Véneto, uma região que engloba cidades como Pádua, Treviso, Verona e Vicenza.
Hora: Mais uma do que Portugal, mais duas do que o TMG.
Língua oficial: Italiano.
População: A Itália tem cerca de 57 milhões de habitantes.
Conselhos: Leve consigo sapatos confortáveis ou sapatilhas.Com uma boa máquina fotográfica e algum jeito poderá obter óptimas fotografias. Adquira uma das belas máscaras venezianas. Se for durante os meses de Inverno, tenha à mão um impermeável para prevenir-se da chuva. Tenha atenção à portaria municipal que impõe multas a quem alimente pombos em território comunal, com excepção para a praça e piazzetta de São Marco e para a riva degli Schiavoni. Pode regatear o preço de um passeio de gôndola. Se der mais umas liras o gondoleiro cantará.
Quando ir: Se for cinéfilo poderá fazer coincidir a sua visita com o Festival Internacional de Cinema (costuma realizar-se entre Agosto e Setembro). Se gostar de um Carnaval diferente não perca o de Veneza. Nos meses de Verão o tempo é quente e seco e o afluxo de turistas maior. Nas restantes estações chove abundantemente.
A não perderDê um passeio de gôndola ao pôr-do-sol. Depois vá tomar um “cappuccíno” a uma das esplanadas da Praça de São Marco enquanto ouve boa música. Para conhecer a pintura veneziana visite a galeria da Academia.
[Trabalho de minha autoria, inserido no suplemento Fugas do jornal Público, 2001]
Etiquetas: Jornalismo, Viagens