8.12.11

O mundo não vai acabar

Por Ana Sá Lopes, publicado em 8 Dez 2011 no jornal I:

Como leitura anti-depressiva, tenho passado estes dias à volta da “History of Modern Britain”. O autor é Andrew Marr, um ex-director da BBC abençoado com uma escrita radiosa. Já sabíamos que o século XX tinha sido horroroso para a Inglaterra como, de resto, para quase toda a Europa. Mas depois da extraordinária vitória na II Guerra, as ilhas britânicas viveram um tenebroso ano de 1947: o Reino Unido estava na bancarrota e a América acabou com o programa de cooperação económica, fechando a torneira do financiamento. Nessa altura, um John Maynard Keynes já muito velhinho foi em nome do governo britânico negociar com a Casa Branca e levou com os pés. O racionamento de 1947 foi muito pior daquele que tinha estado em vigor durante a guerra: cada inglês tinha direito a comer apenas 100g de carne por semana. O governo socialista de Clement Attlee não tinha dinheiro para nada, mas conseguiu pôr todas as crianças a beberem por dia um copo de leite, um sumo de laranja e uma dose de óleo de fígado de bacalhau. Em resumo: a geração de jovens que viveu esse ano horrível (a juntar à crise económica, o Inverno foi gelado e não havia dinheiro para aquecimento) teve rácios de desenvolvimento melhores que a geração anterior. A dose leite-vitamina C distribuída a todas as crianças cumpriu o seu papel.
Trinta anos mais tarde, deu-se a violenta crise do petróleo – que coincidiu em Portugal com o 25 de Abril, mas que é pouco recordada. Nos anos 70, os preços proibitivos do petróleo – uma vingança dos países produtores de petróleo na sequência da guerra de Yom Kippur, em que Israel humilhou o Egipto em 1967 – obrigaram outro governo britânico a impor um plano de austeridade surreal. Há aspectos quase cómicos: os ministros iam solenemente à televisão apelar aos concidadãos para tomarem chuveiros colectivos (para poupar água) e lavarem os dentes às escuras (para poupar luz). A semana de trabalho foi reduzida para três dias – para poupar combustível – e a televisão fechava às 10 e meia da noite, pela mesma razão. Curiosamente, pouca produção se perdeu – uma prova de que a semana de cinco dias não era excepcionalmente produtiva.
O que a história nos ensina sempre é que o presente nem sempre é o pior dos tempos. Sim, não vai haver nenhuma solução para a crise do euro e a cimeira que começa hoje será uma fantochada sem nome. A Europa vai passar por uma crise de que já não se lembra e, provavelmente, irá implodir enquanto união semi-política – mas, às tantas, haverá uma reconversão das coisas. Como diz o próprio Andy Marr, os ingleses e todo o mundo ocidental começaram a trocar, a partir dos anos 60 (em Portugal a ideia só chegou nos anos 80, atendendo à nossa proverbial pobreza) a política pelo “shopping”.
Se esta crise nos levar a recuperar a política para a primeira linha – secundarizando a “alienação” provocada pelo “shopping” teorizada à exaustão pelos filósofos contemporâneos – não se perdeu tudo. Até aqui vingou o lema “a Europa não se discute”, reflexo daquele que Salazar fazia com a pátria. A ideia de começar a discuti-la é, em si, uma coisa boa.

 

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