3.10.08

Vida na transição entre dois mundos


Bairro das Fontinhas, em Pangim, onde a arquitectura é portuguesa e muitos dos habitantes mais velhos continuam a falar a língua de Camões. No centro do bairro fica o bonito palacete da delegação da Fundação Oriente em Goa

OS olhos claros de Fernando Colaço transparecem a simpatia de quem tem tido uma vida rica. Dono de uma energia invejável para um septuagenário, o advogado continua a trabalhar diariamente no seu escritório atafulhado de livros e papéis. Paralelamente à sua actividade de causídico, está a escrever um livro de memórias onde relata com pormenor o “antes, durante e depois” da invasão de Goa pelas tropas indianas. Oriundo de uma família goesa radicada na Beira (Moçambique), Colaço estudou Direito em Lisboa, onde foi colega do malogrado primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro. Formou-se em 1956 e o seu primeiro posto profissional foi como notário na remota ilha açoriana de São Jorge. Seguiu-se Vila Velha de Rodão, onde recebeu notícia de que iria ser criado um notariado em Pangim. Decidiu regressar às origens e tomou posse no dia 1 de Janeiro de 59, sem suspeitar que o poder em Goa iria mudar de mãos rapidamente. “Nunca pensámos que houvesse uma possibilidade de conquista ou invasão armada de Goa. O Nehru tinha fama de pacifista, nós éramos admiradores dele”, recorda. Foi com espanto que, na madrugada do dia 18 de Dezembro de 1961, acordou com o barulho de uma explosão. A União Indiana tinha desencadeado a operação da tomada de Goa, Damão e Diu, As forças invasoras de Goa contavam com cerca de 50 mil homens e Vassalo e Silva, governador-geral do Estado Português da Índia, decidiu desobedecer a Salazar e não oferecer resistência, evitando que o magro contingente militar luso fosse massacrado. A memória mais vívida que Fernando Colaço tem do dia da invasão é a da mensagem do comandante da aviação indiana, berrada a partir de uma avioneta em voo rasante: “Paz e calma! Paz e calma!” - exclamava o militar. No meio destes acontecimentos conturbados, Fernando Colaço manteve a data do seu casamento com Sílvia e o enlace aconteceu no dia 27 de Dezembro. Seguiu-se o ultimato emitido pelo governo militar a todos os funcionários judiciários, que tiveram que jurar lealdade à Índia até dia 6 de Janeiro de 1962, sob pena de demissão dos cargos. Falou mais alto o desejo de ficar em Goa e todos assinaram, inclusive o presidente do Tribunal da Relação e o procurador geral da República. O destino quis que o notário fosse o último representante de um dos cargos mais antigos da administração portuguesa na Índia. O primeiro notário das Índias foi Diogo do Couto, que morreu em Goa no ano de 1616.
A possibilidade de resistência à invasão nunca foi colocada, apesar de ter havido quem defendesse a independência do território, ou até a sua integração numa espécie de “Commonwealth” portuguesa, juntamente com as outras colónias. “Mas Goa não é Timor. Timor é um exemplo para o mundo, em termos de resistência e militância. Morrem pela sua pátria. Aqui em Goa não, somos muito acomodatícios” compara Colaço. O advogado recorda como o português deixou de ser bem visto e mesmo ensinado entre 1961 e 1974. Mas considera que actualmente “voltou a haver alguma projecção da língua, embora anémica”. Na sua opinião, “apenas a Fundação Oriente [da qual é advogado] tem um papel interveniente e seria importante que outras instituições portuguesas marcassem presença em Goa. Para evitar que, no futuro, “sempre que se pergunta a um adolescente como está, ele responda ‘well’”.

[Texto da minha autoria, publicado no suplemento Fugas, do Público; 2005]

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