13.3.13

Benfica, literatura e “kunami” na EPM

KUNAMI”, segundo um dos sketches dos Gato Fedorento, é fruta tropical bem docinha. Durante a manhã de ontem, na Escola Portuguesa de Macau, falou-se de “kunami”, “funami” e outros frutos que tais. Houve ainda tempo para pudim e rap dos matarruanos, bem como citações de Camões ou Bocage. As perguntas foram lançadas por estudantes e professores, Ricardo Araújo Pereira e Rui Zink responderam. Assuntos mais ou menos elevados como o Benfica e a literatura também foram abordados


Por: Raquel Carvalho


Não corram, não corram. Diziam os professores para os alunos. A excitação esteve longe de terminar, mesmo quando sentados e atentos. “Sou humorista quando as coisas correm bem. Quando não correm, sou só uma pessoa que diz coisas”, avisava Ricardo Araújo Pereira. Tanto ele como Rui Zink foram sujeitos às perguntas dos alunos da Escola Portuguesa de Macau (EPM). E passaram com distinção, pelo menos a avaliar pelos aplausos e gritos que encheram o ginásio da instituição, num evento organizado pelo II Festival Literário – Rota das Letras.
“Alguns dos meus colegas dizem que mais do que fazer rir, querem fazer pensar. Eu tenho uma pretensão mais elevada: fazer rir”, confessa Ricardo Araújo Pereira. Dizendo não ser escritor, o humorista, que integra os Gato Fedorento, assegura que isto de causar gargalhadas tem mais de transpiração do que de inspiração. “Um dos segredos do meu trabalho é convencer as pessoas que é improviso, mas é mais trabalho”. Quando está à frente do ecrã do computador, esse, sim, é um momento de espontaneidade. “Invento dez coisas e depois aproveito duas”, conta, perante uma plateia de olhares atentos.
“Há um mito romântico que diz que se nasce com um talento natural. Ora, eu não nasci com nada, aprendi”. Porém, afirma Ricardo Araújo Pereira, “não há uma escola para se ser humorista nem para escrever”. Aos olhos de Rui Zink, a inspiração está dependente da bondade divina, já o trabalho apenas do corpo. “Obviamente que há essa coisa chamada inspiração, mas isso não se controla. A parte que se pode controlar é a do trabalho”. Dá muito trabalho parecer espontâneo, afirma o escritor e professor, usando o equilibrista de circo como exemplo. “O prazer é ver aquela espontaneidade, mas debaixo daqueles fatos de lantejoulas há muitas cicatrizes”.
O percurso de quem escreve acaba por ser um círculo que se completa. “A escola serve para nos ensinar e também para ter uma função repressora”. Aprender a escrever, ao contrário de aprender a desenhar, não é livre, sublinha Rui Zink, filho de professores. Depois, “o circulo vai-se fechando e, um dia, não temos controlo nenhum. Atinge-se a liberdade de quem sabe que nada sabe. Aí chega-se a um momento em que existe espontaneidade no trabalho”.

Fazer rir a avó
A família é, para Ricardo Araújo Pereira, “um manancial enorme de ideias”. Um dos sketches mais populares dos Gato Fedorento, “falam, falam e eu não os vejo a fazer nada”, foi roubado a esse universo. “É um familiar meu com quem eu não me consigo entender bem. A conversa não avança muito, porque ele diz aquele tipo de coisas”, descreve Ricardo Araújo Pereira.
A vontade de provocar o riso alheio surgiu por causa de uma avó, muito sisuda e sempre vestida de negro. “Acho que faço isto por causa da minha avó, a pessoa mais importante da minha vida. A ideia de fazê-la rir era uma ideia que eu levava muito a sério”. Ricardo tentava quebrar a seriedade da avó, “pouco dada a ternura física”. A avó acabava por saltar um riso, que rapidamente continha: “Não tens graça nenhuma”, dizia ao pequeno. “Passei a minha infância a tentar fazer rir a minha avó. Ainda por cima ela fazia um esforço para ser séria”.
Ricardo Araújo Pereira recordou, em conversa com os jovens da EPM, o caminho que percorreu até começar a escrever textos humorísticos. Do esforço de criança até à escolha universitária. “O que aconteceu é que eu queria estudar literatura, mas os meus pais achavam que ninguém ganhava a vida a escrever, então acharam que se eu estudasse algo como comunicação social podia ganhar um pouco melhor – claramente não percebiam nada do mercado de trabalho”.
Durante a faculdade, decidiu fazer um curso de escrita criativa com Rui Zink, que acabaria por indicá-lo ao director das Produções Fictícias, Nuno Artur Silva. “Cresci a ver o Tal Canal e, de repente, estava a escrever para o Herman José”. Hoje em dia, escreve, entre outras coisas, textos que “acidentalmente interpreta”. Porém, subir a um palco não tem nada de natural. “Fecho os olhos e não penso nisso. Sou actor por acaso. É uma coincidência interpretar os meus textos”, garante.




Boleia ao Eusébio
A pergunta que abriu a sessão de ontem apelou ao benfiquismo do humorista. “Eu também me chamo Pereira. Ouvi numa entrevista que uma vez levou o Eusébio no seu carro. O que pensou?”, lançou um dos alunos. “Pensei que íamos falar de coisas menores, escrita e assim”, começou por ripostar Ricardo Araújo Pereira. “Tive dois trabalhos, um foi convencer o meu pai e outro foi convencer o Eusébio que eu lhe queria dar boleia”. Durante a viagem, “fui embasbacado a olhar para ele, até porque não se fala com o Senhor”.
Mais tarde garante ter comprado o carro ao pai. “A cadeirinha da minha filha, quando nasceu, ia do lado direito onde o Eusébio foi sentado”. Rui Zink comprovou o fervor de Ricardo Araújo Pereira: “o Ricardo sofre mais a ver o Benfica do que eu a escrever um romance de 200 páginas”.
E as perguntas sobre o clube lisboeta continuaram. “De um grande benfiquista para outro, o que pensa da renovação do JJ?”, questionou um aluno, referindo-se ao treinador Jorge Jesus. Ricardo Araújo Pereira assumiu, sem pejo, a condição de fã. “Gosto de ver as conferências de imprensa. Desenvolvi um gosto por ouvir o ‘jegar’, porque é mais do que jogar, é jogar, é malandrice, é muita coisa”, explicou, justificando a veneração.
Outros jovens tentaram esmiuçar a origem de alguns dos sketches dos Gato Fedorento. “Qual é a origem do Rap dos Matarruanos?”, quis saber um aluno. “Eu tenho uma raiz matarruana muito forte. A minha família é toda do Norte. Quando quero imitar um sotaque do Norte, imito um irmão ou amigo”, confessa Ricardo Araújo Pereira.
“E de onde vêm as palavras kunami, funami e coisas assim?”, interrogou outra aluna. Essa veio da adolescência, contou o humorista, lembrando um professor de música que um dia criou uma letra de sonoridades idênticas. “E comer pudins daquela forma?”. Ricardo Araújo Pereira deixa um aviso: “pode ser perigoso para vocês e para o próprio pudim”.

Escrever é como cozinhar
Na sessão de ontem, houve ainda tempo para citar Bocage e Camões, com Rui Zink a fazer jus ao gosto de contar histórias. “Não sei se faço bem, mas gosto de contar histórias e de dar aulas. Faço isto há 30 anos. As duas coisas completam-se”. Porém, se tivesse que escolher, optaria pela segunda. “Posso viver sem escrever. Sem dar aulas, posso viver, mas não seria a mesma coisa”. Uma actividade com a qual cresceu. “Sou a terceira geração de professores”.
Aos olhos do autor de obras como “O Suplente” ou “Os Surfistas”, “quando um professor faz menos, é quando corre melhor. Numa aula, o mais interessante é o que acontece no espaço vazio”. Já o processo da escrita é parecido com o da culinária. “Escrevo como se cozinhasse um prato. Faço, deixo repousar, volto a mexer…”.
O cozinhado terá melhor ou pior sabor, consoante o leitor. Mas na escrita, diz Rui Zink, “não há mistérios”: “pode sair um poema de Camões ou o gato comeu a sopa”. A inspiração está sempre no que lhe aparece diante os olhos. “Vou beber inspiração ao que me acontece. As melhores histórias para contar estão à nossa frente”.
A literatura vai andando de mãos dadas com a vida. Quanto melhor leitor, melhor escritor, afirma Rui Zink. “A vida é como um mau romance. Sabemos o início e o fim, o misterioso é o que acontece pelo meio”.

Humorista ou primeiro-ministro?
Com um dos jovens presentes a questionar a credibilidade de um humorista, Ricardo Araújo Pereira dá exemplos de políticos com sucesso. “Em várias partes do mundo estão a ser eleitos comediantes. E as pessoas acham isto incrível, até parece que os engenheiros fizeram um bom trabalho. Eu nem sei qual é a profissão de Pedro Passos Coelho [primeiro-ministro português]”.
O humorista lembra que no Brasil o palhaço Tiririca foi eleito deputado, com mais 1,3 milhões de votos. “O nosso sistema político é de tal forma abjecto que as pessoas votam na abjecção total”. Em Portugal, “sei que existe um grupo de facebook que diz que eu devia ser primeiro-ministro. Sou tanto ou tão pouco credível…”. No entanto, Ricardo Araújo Pereira descarta intenções políticas de uma assentada. “A minha ambição é ser humorista. Não aceito ser despromovido a primeiro-ministro”. Na verdade, “tenho mais credibilidade do que pareço, a não ser em casa, perante as minhas filhas”.
Um pequeno, intrigado com tudo o que viu, questionou ainda: “tirando escrever e contar piadas, o que faz de bem?”. Ricardo Araújo Pereira susteve a respiração e respondeu com um sorriso: “Não há nada em que seja de facto notável. Sou muito bom a ver o Benfica. Sou o melhor do mundo”
(in JTM)

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