“KUNAMI”, segundo um dos sketches dos Gato Fedorento, é
fruta tropical bem docinha. Durante a manhã de ontem, na Escola
Portuguesa de Macau, falou-se de “kunami”, “funami” e outros frutos que
tais. Houve ainda tempo para pudim e rap dos matarruanos, bem como
citações de Camões ou Bocage. As perguntas foram lançadas por estudantes
e professores, Ricardo Araújo Pereira e Rui Zink responderam. Assuntos
mais ou menos elevados como o Benfica e a literatura também foram
abordados
Por:
Raquel Carvalho
Não corram, não corram. Diziam os professores para os alunos. A
excitação esteve longe de terminar, mesmo quando sentados e atentos.
“Sou humorista quando as coisas correm bem. Quando não correm, sou só
uma pessoa que diz coisas”, avisava Ricardo Araújo Pereira. Tanto ele
como Rui Zink foram sujeitos às perguntas dos alunos da Escola
Portuguesa de Macau (EPM). E passaram com distinção, pelo menos a
avaliar pelos aplausos e gritos que encheram o ginásio da instituição,
num evento organizado pelo II Festival Literário – Rota das Letras.
“Alguns dos meus colegas dizem que mais do que fazer rir, querem fazer
pensar. Eu tenho uma pretensão mais elevada: fazer rir”, confessa
Ricardo Araújo Pereira. Dizendo não ser escritor, o humorista, que
integra os Gato Fedorento, assegura que isto de causar gargalhadas tem
mais de transpiração do que de inspiração. “Um dos segredos do meu
trabalho é convencer as pessoas que é improviso, mas é mais trabalho”.
Quando está à frente do ecrã do computador, esse, sim, é um momento de
espontaneidade. “Invento dez coisas e depois aproveito duas”, conta,
perante uma plateia de olhares atentos.
“Há um mito romântico que diz que se nasce com um talento natural. Ora,
eu não nasci com nada, aprendi”. Porém, afirma Ricardo Araújo Pereira,
“não há uma escola para se ser humorista nem para escrever”. Aos olhos
de Rui Zink, a inspiração está dependente da bondade divina, já o
trabalho apenas do corpo. “Obviamente que há essa coisa chamada
inspiração, mas isso não se controla. A parte que se pode controlar é a
do trabalho”. Dá muito trabalho parecer espontâneo, afirma o escritor e
professor, usando o equilibrista de circo como exemplo. “O prazer é ver
aquela espontaneidade, mas debaixo daqueles fatos de lantejoulas há
muitas cicatrizes”.
O percurso de quem escreve acaba por ser um círculo que se completa. “A
escola serve para nos ensinar e também para ter uma função repressora”.
Aprender a escrever, ao contrário de aprender a desenhar, não é livre,
sublinha Rui Zink, filho de professores. Depois, “o circulo vai-se
fechando e, um dia, não temos controlo nenhum. Atinge-se a liberdade de
quem sabe que nada sabe. Aí chega-se a um momento em que existe
espontaneidade no trabalho”.
Fazer rir a avó
A família é, para Ricardo Araújo Pereira, “um manancial enorme de
ideias”. Um dos sketches mais populares dos Gato Fedorento, “falam,
falam e eu não os vejo a fazer nada”, foi roubado a esse universo. “É um
familiar meu com quem eu não me consigo entender bem. A conversa não
avança muito, porque ele diz aquele tipo de coisas”, descreve Ricardo
Araújo Pereira.
A vontade de provocar o riso alheio surgiu por causa de uma avó, muito
sisuda e sempre vestida de negro. “Acho que faço isto por causa da minha
avó, a pessoa mais importante da minha vida. A ideia de fazê-la rir era
uma ideia que eu levava muito a sério”. Ricardo tentava quebrar a
seriedade da avó, “pouco dada a ternura física”. A avó acabava por
saltar um riso, que rapidamente continha: “Não tens graça nenhuma”,
dizia ao pequeno. “Passei a minha infância a tentar fazer rir a minha
avó. Ainda por cima ela fazia um esforço para ser séria”.
Ricardo Araújo Pereira recordou, em conversa com os jovens da EPM, o
caminho que percorreu até começar a escrever textos humorísticos. Do
esforço de criança até à escolha universitária. “O que aconteceu é que
eu queria estudar literatura, mas os meus pais achavam que ninguém
ganhava a vida a escrever, então acharam que se eu estudasse algo como
comunicação social podia ganhar um pouco melhor – claramente não
percebiam nada do mercado de trabalho”.
Durante a faculdade, decidiu fazer um curso de escrita criativa com Rui
Zink, que acabaria por indicá-lo ao director das Produções Fictícias,
Nuno Artur Silva. “Cresci a ver o Tal Canal e, de repente, estava a
escrever para o Herman José”. Hoje em dia, escreve, entre outras coisas,
textos que “acidentalmente interpreta”. Porém, subir a um palco não tem
nada de natural. “Fecho os olhos e não penso nisso. Sou actor por
acaso. É uma coincidência interpretar os meus textos”, garante.
Boleia ao Eusébio
A pergunta que abriu a sessão de ontem apelou ao benfiquismo do
humorista. “Eu também me chamo Pereira. Ouvi numa entrevista que uma vez
levou o Eusébio no seu carro. O que pensou?”, lançou um dos alunos.
“Pensei que íamos falar de coisas menores, escrita e assim”, começou por
ripostar Ricardo Araújo Pereira. “Tive dois trabalhos, um foi convencer
o meu pai e outro foi convencer o Eusébio que eu lhe queria dar
boleia”. Durante a viagem, “fui embasbacado a olhar para ele, até porque
não se fala com o Senhor”.
Mais tarde garante ter comprado o carro ao pai. “A cadeirinha da minha
filha, quando nasceu, ia do lado direito onde o Eusébio foi sentado”.
Rui Zink comprovou o fervor de Ricardo Araújo Pereira: “o Ricardo sofre
mais a ver o Benfica do que eu a escrever um romance de 200 páginas”.
E as perguntas sobre o clube lisboeta continuaram. “De um grande
benfiquista para outro, o que pensa da renovação do JJ?”, questionou um
aluno, referindo-se ao treinador Jorge Jesus. Ricardo Araújo Pereira
assumiu, sem pejo, a condição de fã. “Gosto de ver as conferências de
imprensa. Desenvolvi um gosto por ouvir o ‘jegar’, porque é mais do que
jogar, é jogar, é malandrice, é muita coisa”, explicou, justificando a
veneração.
Outros jovens tentaram esmiuçar a origem de alguns dos sketches dos Gato
Fedorento. “Qual é a origem do Rap dos Matarruanos?”, quis saber um
aluno. “Eu tenho uma raiz matarruana muito forte. A minha família é toda
do Norte. Quando quero imitar um sotaque do Norte, imito um irmão ou
amigo”, confessa Ricardo Araújo Pereira.
“E de onde vêm as palavras kunami, funami e coisas assim?”, interrogou
outra aluna. Essa veio da adolescência, contou o humorista, lembrando um
professor de música que um dia criou uma letra de sonoridades
idênticas. “E comer pudins daquela forma?”. Ricardo Araújo Pereira deixa
um aviso: “pode ser perigoso para vocês e para o próprio pudim”.
Escrever é como cozinhar
Na sessão de ontem, houve ainda tempo para citar Bocage e Camões, com
Rui Zink a fazer jus ao gosto de contar histórias. “Não sei se faço
bem, mas gosto de contar histórias e de dar aulas. Faço isto há 30 anos.
As duas coisas completam-se”. Porém, se tivesse que escolher, optaria
pela segunda. “Posso viver sem escrever. Sem dar aulas, posso viver, mas
não seria a mesma coisa”. Uma actividade com a qual cresceu. “Sou a
terceira geração de professores”.
Aos olhos do autor de obras como “O Suplente” ou “Os Surfistas”, “quando
um professor faz menos, é quando corre melhor. Numa aula, o mais
interessante é o que acontece no espaço vazio”. Já o processo da escrita
é parecido com o da culinária. “Escrevo como se cozinhasse um prato.
Faço, deixo repousar, volto a mexer…”.
O cozinhado terá melhor ou pior sabor, consoante o leitor. Mas na
escrita, diz Rui Zink, “não há mistérios”: “pode sair um poema de Camões
ou o gato comeu a sopa”. A inspiração está sempre no que lhe aparece
diante os olhos. “Vou beber inspiração ao que me acontece. As melhores
histórias para contar estão à nossa frente”.
A literatura vai andando de mãos dadas com a vida. Quanto melhor leitor,
melhor escritor, afirma Rui Zink. “A vida é como um mau romance.
Sabemos o início e o fim, o misterioso é o que acontece pelo meio”.
Humorista ou primeiro-ministro?
Com um dos jovens presentes a questionar a credibilidade de um
humorista, Ricardo Araújo Pereira dá exemplos de políticos com sucesso.
“Em várias partes do mundo estão a ser eleitos comediantes. E as pessoas
acham isto incrível, até parece que os engenheiros fizeram um bom
trabalho. Eu nem sei qual é a profissão de Pedro Passos Coelho
[primeiro-ministro português]”.
O humorista lembra que no Brasil o palhaço Tiririca foi eleito deputado,
com mais 1,3 milhões de votos. “O nosso sistema político é de tal forma
abjecto que as pessoas votam na abjecção total”. Em Portugal, “sei que
existe um grupo de facebook que diz que eu devia ser primeiro-ministro.
Sou tanto ou tão pouco credível…”. No entanto, Ricardo Araújo Pereira
descarta intenções políticas de uma assentada. “A minha ambição é ser
humorista. Não aceito ser despromovido a primeiro-ministro”. Na verdade,
“tenho mais credibilidade do que pareço, a não ser em casa, perante as
minhas filhas”.
Um pequeno, intrigado com tudo o que viu, questionou ainda: “tirando
escrever e contar piadas, o que faz de bem?”. Ricardo Araújo Pereira
susteve a respiração e respondeu com um sorriso: “Não há nada em que
seja de facto notável. Sou muito bom a ver o Benfica. Sou o melhor do
mundo”
(in
JTM)
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