4.6.12

EXCERTOS de uma excelente entrevista feita pelo Carlos Picassinos ao arquitecto Manuel Vicente, que sabe cantar (no sentido 'milleriano' do termo):



Disse que chegou a Macau com uma grande vontade de trabalhar um “pato bravo”.
Eu cheguei com uma grande vontade de real, para além da convenção da escola arquitectónica, para além do que o arquitecto devia fazer ou não. Esta espécie de selvagização, o neologismo não é famoso, do direito de cidade, como o jazz que ganha direito de cidade quando era uma música dos excluídos busca uma democratização do estético, do plástico, artístico. Acabar com essas exclusões do high brow e do low brow. Agora a cantora de ópera também canta Beatles, entende? Queria alargar a respiração, pôr o peito ao vento e ao sol e acabar com o espartilhos da burguesia da idade industrial.

Como é que trabalhou este discurso em Macau?
Procurando o vulgar e encontrando o poético escondido. Olhar sem cair naquela coisa do ‘ai que horror, os chineses metem grades em todo o lado!’ Era tentar perceber que havia ali escolhas e era importante perceber esses sinais com que as pessoas iam configurando o mundo. Mas isto na Europa… sei lá, o senhor fidalgo das terras do século XVIII olhava para as aldeias que hoje se vendem aí nos cartazes turísticos como uma imundície horrível, não valorizava aquilo, nem as próprias pessoas que lá viviam porque se comparavam com o castelo, não é! Ou seja, é preciso perceber que há mais mundo do que o que se convenciona aceitar, ou dignar-se olhar para. Não ficar a olhar para o pitoresco, ou olhar o pitoresco pelo menos a dizer ‘olhem como este selvagens são capazes de fazer não sei o quê…”. Achar que toda a expressão de um gosto ou de uma vontade de configuração é estimável.

Falou também de uma religiosidade no seu trabalho com os materiais, do hibrido…
Há quem diga que eu sou pós-colonial porque já não venho com aquela postura de colono que quando vai, vai ensinar alguma coisa àqueles selvagens. Eu tento perceber o que aquelas pessoas sabem, os seus fantasmas, os seus gostos, o cruzamento de culturas mas nesse sentido… sei lá, a relação com o sagrado, a obsessão com a morte que os camponeses têm, a obsessão com o jogo que é a encenação dessa morte, o jogo da vida, o acaso, a sorte, como aquele filme do [Michael] Cimino “O Caçador” e a roleta russa que é um ritual muito intenso, como são os combates de galos das Filipinas. Não é um divertimento, as pessoas levam aquilo muito a sério.

Mas ainda é possível encontrar essa contemporaneidade ou as mudanças foram tão acentuadas que se perdeu um pouco?
É sempre especial e diferente. Mesmo que seja uma cópia de Las Vegas, é sempre diferente, e Las Vegas é diferente de Macau. Para mim, nunca nada está perdido. As pessoas de Macau estão todos os dias a construir diferenças. Nunca tive nostalgia de Macau. Cheguei em 1962 e havia aquela Praia Grande, e depois nos anos 70 deitaram aquelas casas abaixo… É a mesma coisa de quando olhamos para aquelas fotografias de criança quando tinhamos cabelos loiros, ou quando estamos a fazer músculo na juventude. Ficamos é com grande estima com o processo da vida. Eu fico com mais curiosidade do que nojo! Importa mais o esplendor da vida. Também ninguém gostava dos arranha-céus de Nova Iorque, ou de Chicago, e depois a geração seguinte incorporou aquilo no seu gosto. Mas aquilo só podia ser feito na América, nunca na Europa, porque ali havia um território mais livre, mais desocupado, e isso também fazia as mentes mais livres, com mais desejos, a realidade não era tão normativa. O que eu digo é que nos temos deixar penetrar por novos modos de olhar, outras formas de dizer as coisas. Quer dizer, não se escreve da mesma maneira depois da literatura americana do Miller, ou do Scott Fitgerald. De repente, abriu-se o espaço da escrita, e no cinema também foi a mesma coisa.

(...)

Nestas ausências e presenças, em Macau ou em Lisboa, considera-se um outsider no meio da arquitectura portuguesa?
Sempre achei isso engraçado. Tinha um aluno meu no Técnico que os pais eram imigrantes açorianos nos Estados Unidos e, por uma razão qualquer de afecto com Portugal, mandaram-nos estudar um ano no Técnico. Eu chamava-lhe o luso-português. Realmente, a nossa cultura deve mais aos luso-portugueses do que aos portugueses. Como o Eça que era um português exilado, ou o Jorge de Sena, e o próprio Saramago que acabou lá naquela ilha de Lanzarote, nas Canárias, e o Camões. Este país é capaz de ser um pouco auto-fágico, pequeno demais, as pessoas concentram-se em pequenos conflitos e não criam distancias e é preciso criar distâncias para depois vir mais livre, desafogado, redescobrir as maravilhas, olhar para a costa atlântica ou para o Alentejo, com um olhar mais largo, menos cego de conflitualidade, porque aqui é difícil não estar sempre envolvido num conflito qualquer… Mas Portugal também é muito cruel em receber os luso-portugueses, como este pobre ministro que esteve no Canadá. Ninguém lhe perdoa isso! (risos)

E o Manuel Vicente é um luso-português?
Sou, sim. Sou um exemplo muito acabado disso mesmo. É difícil encaixar-se. É muito irritante. É-se sempre um intruso. É sempre difícil regressar a Portugal. Há sempre o estigma, ‘este tipo não é dos nossos’. Em Macau, é o mesmo. Mas esta frequentação do estrangeiro choca um pouco o indígena. É sempre um pouco segregado por mais simpáticas que as pessoas sejam. Vive-se sempre no meio de rejeições, que às vezes são estruturantes, nos pequenos ódios lusitanos de que é feito o nosso dia-a-dia neste cantinho. Sei lá, é a nossa condição. Mas o mundo também é ainda muito tribal, de certa maneira.

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