1.2.11

Cairo - A rebentar pelas costuras

uns anos eu era colaborador do suplmento Fugas, do Público, para onde escrevia artigos e crónicas de viagem. Houve uma, sobre o Cairo, que nunca foi publicada. Não percebi muito bem porquê, dado que me pareceu ser uma observação válida (e os últimos acontecimentos confirmam-no), mas nunca me quiseram publicar esta crónica. Fiquei a pensar que talvez isso se devesse ao facto de o suplemento ser patrocinado, na altura, por agências de viagens que cantavam as maravilhas do Egipto nos anúncios que ali publicavam. Não seria, portanto, propício publicar um relato um pouco destoante... De qualquer dos modos, aqui fica a cronicazinha de uma visita ao Cairo:


A “explosão demográfica” já foi identificada pelas autoridades egípcias como um dos mais preocupantes problemas do país. O Egipto tem actualmente 69 milhões de habitantes, mas as previsões estatais indicam que terá 79 milhões em 2010, 97 milhões em 2020 e 119 milhões em 2030. “É uma responsabilidade de toda a sociedade, não queremos tornar-nos num país que só cuida de um décimo da sua população e negligencia o resto”, afirmou num discurso Hosni Mubarak, o homem que está há três décadas no poder.
A maioria da população concentra-se no Cairo, que parece já estar a abarrotar de gente. As zonas rurais à sua volta estão a ser rapidamente transformadas em subúrbios assustadores. Tratam-se de extensões intermináveis de prédios inacabados, na maior parte dos casos com fachadas de tijolo e sem qualquer arranjo exterior. Estes autênticos caixotes são, muitas vezes, rodeados de montes de lixo, já que não é feita a sua recolha. As fétidas condições de higiene impressionam: há lixo à volta dos ribeiros onde mulheres lavam a roupa e, mais à frente, um cavalo putrefacto a apodrecer na rua. Ao lado do animal morto, crianças brincam e rebolam pelo chão.
A quantidade de pessoas a viverem na pobreza é enorme, mas, segundo me asseguraram, ninguém passa fome, dado que no Egipto há o costume (e o dever familiar e religioso) de se partilhar o pouco que se tem. A sobrepopulação é muito evidente na cidade islâmica do Cairo ao fim da tarde. No bazar de al-Khalili, no meio de uma multidão compacta e esfuziante, quase levitei à medida que entrava num cenário medieval, com ruas de terra, lixo abundante e pequenas lojas de todo o género, que parecem saídas de um tempo que nada tem a ver com o ocidental, tal como o escritor Albert Cossery tão bem notou. Naquela sexta-feira (dia feriado) de Ramadão toda a gente tinha acorrido ao centro da cidade e, em certas ruas, não se conseguia vislumbrar um bocadinho de asfalto ou passeio. Milhares de pessoas passeavam, faziam compras ou festejavam, sendo necessário romper por entre a mole humana para seguir caminho. Um estrangeiro ali é facilmente distinguível e poderia ser roubado com toda a facilidade. Mas tal não sucede, nem há qualquer sensação de insegurança. A consciência de estar perdido naquela imensidão do Cairo é de júbilo interior. Não há hostilidade, antes festa de cheiros e rostos. Resta saber se a capital egípcia continuará a ter esta componente festiva quando a sua população duplicar, tal como indicam as previsões. Os mais pessimistas (ou avisados?) defendem que, nessa altura, a cidade ficará inabitável.

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