6.10.10

MORREU na segunda-feira o advogado e escritor macaense Henrique de Senna Fernandes, que escreveu isto, que tanto me tocou:

"(...)
O marujo penetrou na sua vida sem alvoroço, naturalmente. Batizou-o de Cou-Lou - Homem Alto - sem que todavia se lhe endereçasse deste modo. A princípio, as companheiras reprovaram o procedimento, abanando a cabeça em murmurações. Por fim habituaram-se a considerá-lo como seu homem. Era bem certo que não poderia viver eternamente só. Aliás nada ha­veria de mais banal do que descobrir um marinheiro ligado a uma tancarei­ra. Não valia a pena, portanto, barafustar. Assim todas as vezes que surgia à noite, junto do tancar, A-Lin saltava para as embarcações fronteiras e deixava a amiga sozinha, imperturbável.

Não lhe dedicava o marinheiro todas as horas de folga. Havia mesmo dias que não lhe via a cara. Mas não passava uma semana que não a tomasse nos braços e lhe fizesse esquecer o rio. Não exigia A-Chan mais do que isto, contente de se sentir preferida e acarinhada. Não conhecera senão aquele homem e ninguém lhe acordara sensações tão inebriantes. Entregara-lhe o corpo com tanta docilidade e submissão, como quando a Velha o punha roxo de vergastadas. Não lhe podia fugir nem chegava a esboçar a mais leve resis­tência, embora soubesse que não devia acolhê-lo tão abertamente.

Decerto possuía mais mulheres. Todos os homens possuíam, quanto mais um marinheiro. Não a acidulava, porém, o ciúme porque se criara na lógica do concubinato e da bigamia. Tudo lhe era natural. No fundo, até se orgulhava de pertencer ao número daquelas que partilhavam do seu amor.

Manuel devassara mundos, estivera nos cruzeiros de África, familiarizara-se com os trópicos e calmarias, sequioso de aventura e da paixão do mar. Abor­dara a Macau, transferido para a marinha privativa da província e, durante anos se deixara seduzir pelos exotismos e sortilégios do burgo macaense. Já dava por finda a comissão, quando a guerra estalou com todo o seu cortejo de horrores.
(...)
Quando A-Chan pisou o seu destino, não a tratou melhor nem pior que as outras de quem ia buscar um pouco de lenitivo para os seus desgostos. Não a considerou mais que um objeto de prazer de quem se podia apartar com indiferença. Mas cedo lobrigou que a tancareira possuía um dom ma­ravilhoso, que lhe fazia bem sentir-se ao pé dela. Não que fosse bonita, não. Era feia, rosto macerado e trigueiro, uma resignação estampada de quem conhecia o ferrete do sofrimento. Olhos oblíquos, dois traços miúdos, um nariz chato, grosseiro. Horrenda, não, simplesmente feia. Mas que terna ex­pressão de escrava submissa.

Nas suas andanças pelo mundo, familiarizara-se com mulheres de vá­rias raças e sabia por que preço se amava uma prostituta ao longo de todo esse Oriente prodigioso. Mas A-Chan não lhe dava a sensação dum alcoice, porque havia nela qualquer coisa de meigo, de suave, de muito comovente. E ele era um sentimental. Saturara-se do ambiente deletério das hospedarias, onde a miséria era mais profunda. Não podia suportar os sorrisos estereoti­pados das flores dos bairros de amor, as suas carícias automáticas, a desgraça imensa da guerra. Não, porque esta não era só a metralha e o sangue. Era também a fome daqueles milhares de seres que diariamente morriam nas arcadas frias da cidade, a doença que ruía sobre os miseráveis sem guarida, o meretrício desenfreado - moças e crianças mercadejadas por pais famintos.

A-Chan trazia-lhe paz na sua desinteressada dedicação. Chocava-o aquela submissão de fêmea amorosa que nada pedia. Uma calada devoção que o enternecia. Gostava de ficar ao pé dela a seguir a marcha rutilante das estrelas, a paisagem noturna de Macau, o casario da Penha e o da Barra diluídos em sonho no fundo azul da noite. Era feia, ignorante, açulada pela canga do rio. Mas os olhos orientais não escondiam uma imensa ternura pelo marinheiro saudoso do mar. Sensibilizava-o a maneira como lhe sorria, como lhe oferecia a tigela de chá ou como lhe passava os dedos calosos e ás­peros pelos seus cabelos louros de europeu, num requinte de familiaridade. Falavam pouco, entendiam-se mais por gestos que por palavras. Mas que refartantes os silêncios em que ela se apagava num canto do tancar para não lhe perturbar as meditações.
(...)
E foi numa dessas noites em que o silêncio se quebrava com a trepi­dação irada dos aviões que ela descobriu a insofismável nova. Ia ter uma criança, um filho desse homem louro, de olhos azuis, que tão suavemente a tratava. Qualquer coisa de inédito, de estupendo nasceu nela, um sentimento indefinido e ao mesmo tempo embriagador. Mas calou-se, aguilhoada por súbito pudor e infantil receio de que ele se zangasse por não ter sabido evitar a maternidade.
(...)
"Pulou para a embarcação e atancareira, sem mais palavra recolheu a prancha, desligou as amarras. E o tancar deslizou na noite negra e úmida. Não falaram durante muito tempo. Ele, comovido, a gozar aquela serenidade tão difícil de haurir nesses trágicos dias. Ela, confusamente feliz, um mundo a entrechocar-se no âmago do coração. Mas ambos pareciam indiferentes.
Ele, a reprimir uma vontade incontida de chorar. Ela, sempre oriental, a es­conder os mais exaltados sentimentos num rosto imóvel, quase impassível.

De repente, alguma coisa se agitou perto dele. Ergueu-se alarmado, e, entre panos velhos e andrajosos, descortinou o indiscreto que lhe cortava o fio das meditações. Ficou aniquilado ao tocar na criança que se esperneava ao frio. Um ser minúsculo, ralos cabelos alourados, tez quase branca, olhos claros, a denunciar ascendência européia.

Os remos vibravam, com ritmo singular, na placidez da noite. Achi­nesa parecia alheia ao drama que se desenrolava perto. Mas os olhos não se despregavam do enorme dorso do marinheiro e compreendiam quão petri­ficado ele estava.

Acriança soltou um vagido, mais outros. Atabalhoadamente, Manuel enfaixou-a, apertou-a contra o peito, ciciando:

- Minha filha, minha pequenina.

A-Chan entendeu o apelo da criança. Largou os remos e pediu branda­mente ao marinheiro que a substituísse. - O nome?

- Mei Lai.

O tancar vogou, por segundos, à deriva, porque o marinheiro senti­mental se especara na adoração da filha que sugava o peito sazonado da mãe, com abençoada sofreguidão.

Acordou nele a paternidade, um amor profundo pela inocente. Expe­rimentado nos perigos que rodeavam o tancar, pensou logo em afastá-la do rio e, ao cabo de duas semanas desencantou uma casa na Praia do Manduco. Não defrontou qualquer oposição da mãe, que detestava a terra, onde a vida lhe fora tão agreste. Submetera-se A-Chan, porque não lhe estava nos hábitos contrariá-lo e, mormente, quando lhe patenteava maior afeição. Confiou o barquinho aos cuidados de A-Lin e, docilmente internou-se na cidade.

Foram os mais aliciantes meses que juntos viveram. Até ali, A-Chan não era mais do que uma simples ligação de marinheiro. Agora era a mãe da sua filhinha. Continuavam a falar pouco, isolados em mundos opostos. Entre eles, porém, existia a doce presença de Mei Lai. O que ambos não conseguiam dar um ao outro, prodigalizavam-no à criança. E como eram felizes! Atancareira soltava francas gargalhadas, sem rebuço, quando brincava com ela. E Manuel transmudava-se num gaiato, que passava horas sem fim a distraí-la.

Aguerra terminava, no entanto. Rendida a Alemanha, esfacelava-se o Império do Sol Nascente. Ao observar A-Chan nas suas lides domésticas uma tribulação se apoderava dele. Sabia que não podia ficar para sempre ao pé da tancareira, porque o seu destino era o mar. Não lhe tinha amor porque isso só podia florir com a comunhão absoluta das almas. Mas votava por ela uma estima que jamais tivera por alguém. Os colegas chasqueavam dele, do seu "gosto degenerado". Não atinavam como pudesse viver junto daquela criatura feia. Mas era verdade. Pesava-lhe abandoná-la, agora que a via tão venturosa, protegida da crueldade do rio. Aliás, fora a única mulher que lhe insuflara a sensação de possuir um lar.

E não se enganava. Nunca A-Chan bendisse tanto a vida como naqueles meses. Aterra mostrara-lhe a sua feição benigna. Não era uma desprezada mui-tchai que ali estava. Era uma senhora que governava a sua casa, com o devido respeito da vizinhança. Orgulhava-se da Mei-Lai, como se tivesse dado à luz um rapaz. E nunca o seu amor pelo marujo louro, de olhos azuis, fora tão grande, tão mimoso. Sim, a guerra estava no fim. Ele dera-lhe a perceber, desde o começo que, depois da tempestade faria rumo ao longínquo País das Uvas. Mas esperava que ele não partisse, agora que tinham uma filha. E, aca­lentada por tal esperança, vivia indiferente a tudo que não fosse o lar.
(...)
Jantou sem apetite, só para agradar à companheira que se empenhara em oferecer-lhe opípara refeição. Dilacerava-o a sua mansidão usual. Prefe­ria que ela gritasse toda a sua revolta do que guardar no fundo da sua alma estranha de oriental, uma dor incomensurável. Estava pálida, imensamente abatida. Mas procedia como se estivesse em dias mais ledos.

Quando bateram as nove de qualquer relógio da cidade, soergueu-se da esteira, onde se deitara para mitigar a comoção. A-Chan, que amamentava a criança, estremeceu.

- Vamos.

Ela assentiu resignada, aconchegando mais a si o ente querido de quem se ia separar. Manuel pegou nos remos e guiou o tancar para o porto, para os cais de embarque, onde resfolegava a lancha dos passageiros.

Então, nesse momento, sem disfarces, romperam soluços do peito da tancareira. Espaçados, pungentes, envergonhados. Manuel quis-lhe pedir que os contivesse, mas estrangulara-se-lhe a voz. E sentiu que perdia qual­quer coisa de inestimável que jamais poderia ser substituída. Remou com mais vigor na penosa necessidade de escapar àquela cena. O inverno soprava da China uns resquícios do seu vento gelado. Mas, de novo, ninguém deu por ele. E os soluços continuavam. Espaçados, pungentes, envergonhados.

O marinheiro não subiu imediatamente para a lancha. Já soara o se­gundo apito para a largada. Ficaram a olhar para a filha adormecida, ambos lutando para balbuciar algumas palavras. Ela feia, sucumbida, a conter em vão os soluços, para implorar que voltasse para tirá-la do rio que era a sua prisão. Ele, para inutilmente prometer os mais impossíveis compromissos, e rogar-lhe que fosse boa rapariga.

Quando o apito estrugiu mais uma vez, Manuel estendeu os braços para a tancareira humilde. A-Chan mirou-o num instante e depois, suavemente, entregou-lhe a filha pequenina, murmurando numa derradeira solicitude maternal.

- Cuidadinho... cuidadinho...

(Escrito em Coimbra, em Fevereiro de 1950, com saudades de Macau.)

Etiquetas: ,

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial

Em Macau: Em Lisboa:
www.flickr.com
This is a Flickr badge showing public photos and videos from BARBOSA BRIOSA. Make your own badge here.
Bookmark and Share