1.9.09

DIZ-SE que Rimbaud, no tempo em que escrevia o seu “livro negro” (Une Saison en Enfer), terá afirmado: “O meu destino depende deste livro!” Nem o próprio Rimbaud sabia como era profundamente verdadeira essa afirmação. À medida que começamos a compreender o nosso próprio destino trágico, começamos também a perceber o que ele queria dizer. Tinha identificado o seu destino com o da época mais crucial de que o homem tinha conhecimento. Das duas uma, ou, como Rimbaud, renunciamos a tudo aquilo que a nossa civilização tem representado até aos nossos dias, e procuramos construir desde o princípio, ou destruímo-la com as nossas próprias mãos. Quando o poeta está no nadir, então não há dúvida de que o mundo está de pernas para o ar. Se o poeta já não pode falar em nome da sociedade, mas apenas em seu próprio nome, então é porque estamos encurralados na última trincheira. Sobre o cadáver poético de Rimbaud, começámos a levantar uma torre de Babel. Nada significa o facto de ainda haver poetas e de alguns deles ainda serem inteligíveis, capazes de comunicar com a multidão. Qual é o rumo da poesia e onde reside o elo entre o poeta e a sua audiência? Qual é a mensagem? Esta é a pergunta mais importante. Qual é a voz que hoje em dia se faz ouvir, a do poeta ou a do cientista? Andamos a pensar na Beleza, por amarga que seja, ou anda mos a pensar na energia atómica? E qual é a principal emoção que as nossas grandes descobertas inspiram? Pavor! Temos saber e não temos sabedoria, temos conforto e não temos segurança, acreditamos mas não temos fé. A poesia da vida expressa-se apenas em termos matemáticos, físicos, químicos. O poeta é um pária, uma anomalia. Caminha para a extinção. Quem é que hoje se preocupa com o facto de o poeta se tornar a si próprio monstruoso? O monstro anda à solta. Passeia-se pelo mundo. Fugiu do laboratório e está ao serviço de seja quem for que tenha coragem suficiente para lhe dar emprego. Na verdade, o mundo tornou-se número. A dicotomia moral, como todas as dicotomias, sofreu um colapso. Atravessamos uma era em que uma grande maré tudo arrasta ao acaso. Começou a grande deriva.
E os loucos falam de reparações, inquisições, retribuições, de alinhamentos e coligações, de comércio livre e de estabilidade e revitalização económicas. Nenhum deles acredita, no fundo, que a situação mundial possa ser regulada. Todos aguardam o grande acontecimento, o único acontecimento que nos preocupa dia e noite: a próxima guerra. Pusemos tudo em total desordem e ninguém sabe nem como nem onde procurar os meios de a controlar. Os travões ainda estão no sítio, mas será que funcionam? Sabemos que não. O demónio anda à solta. A era da electricidade já lá vai há tanto tempo como a Idade da Pedra. Esta é a Idade do Poder, do poder puro e simples. Agora a escolha é entre céu e inferno; já não é possível meio termo. E tudo indica que vamos escolher o inferno. Se o poeta vive o seu inferno, já não é possível ao homem comum escapar dele. Terei eu dito que Rimbaud era um renegado? “Todos somos renegados. Desde o alvorecer dos tempos que andamos a renegar. Finalmente, o destino consegue andar a par connosco. Todos, homens, mulheres e crianças, identificados com esta civilização, vamos entrar na nossa Estação no Inferno. É isso que temos andado a pedir; cá está. Aden ainda nos há-de parecer um local confortável. No tempo de Rimbaud ainda era possível deixar Aden e partir para Harare, mas daqui por cinquenta anos o mundo há-de parecer uma vasta cratera. Apesar do que em contrário possam dizer os cientistas, o poder que o homem tem hoje nas mãos é radioactivo, é permanentemente destrutivo. E nunca pensámos no poder em. termos de bem; apenas em termos de mal. Nada existe de misterioso no que toca à energia do átomo; o mistério reside no coração dos homens. A descoberta da energia atómica ocorre em sincronia com a descoberta de que nunca mais podemos confiar uns nos outros. Aqui, neste medo capaz de se multiplicar como as cabeças da Hidra, medo que nenhuma bomba consegue destruir, aqui é que reside a nossa fatalidade. O verdadeiro renegado é o homem que perdeu a fé no seu semelhante. E a perda da fé, hoje, é universal. Aqui, neste ponto, o próprio Deus é impotente. A nossa fé transpôs-se para a bomba e será a bomba a responder às nossas orações.”



O Tempo dos Assassinos
Henry Miller
Hiena Editora, 1983
Colecção Cão Vagabundo 8

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