28.10.08

O caminho proibido até Lhasa

«O epíteto de viajante incansável aplica-se na perfeição a Alexandra David-Néel, a primeira mulher ocidental a chegar à capital do Tibete, Lhasa, percorrendo durante oito meses regiões inexploradas sob o disfarce de peregrina. A francesa era uma estudiosa da cultura tibetana e a sua vontade de levar a cabo a expedição impôs-se quando, após uma prolongada estada entre os tibetanos dos Himalaias, entrou no país. “Senti que, por detrás das montanhas cobertas de florestas que se erguiam entre mim e os longínquos cumes nevados que se elevavam acima delas, existia realmente um país diferente de qualquer outro”, recorda em “Viagem ao Tibete”.
Outra forte motivação de Alexandra David-Néel era o desejo de ultrapassar os obstáculos criados pelos colonialistas britânicos, que, na prática, impediam a visita ao coração do Tibete. Nem sempre tinha sido assim: no século XVIII missionários católicos e até alguns laicos visitaram Lhasa, ali permanecendo durante bastante tempo. Mas, no início do séc. XX, “um punhado de políticos ocidentais tentava intimidar os exploradores, erguendo barreiras à volta de uma região que legalmente não lhes pertencia e fazendo com que só os seus agentes pudessem percorrer livremente o país por eles denominado de proibido”.
Após cerca de 14 anos de viagens pela Ásia e quatro tentativas falhadas de aceder à zona proibida do Tibete, a autora era já uma profunda conhecedora do budismo e da língua tibetana quando empreendeu a viagem que a levaria a Lhasa, em 1916. Entrou no país através das províncias controladas pela China, únicas onde os estrangeiros eram tolerados, acompanhada por um jovem lama (título honorífico que designa um religioso budista) chamado Yongden. Até se encontrarem nas rotas de peregrinação, caminharam sempre durante a noite e permaneceram escondidos durante o dia, por forma a não lhes descobrirem o rasto. David-Néel assumiu a identidade de velha mãe de Yongden, vestida com o traje local, tendo tido o cuidado de pintar o cabelo com tinta da china e esfregar regularmente a cara com fuligem, por forma a ficar com uma tez mais escura, próxima da tibetana.
O equipamento que levavam reduzia-se ao mínimo indispensável: “Uma tenda minúscula de algodão fino, estacas de ferro, cordas, um grande pedaço de couro não curtido de proveniência tibetana para substituir as solas das botas, um quadrado de tela espessa, para atenuar a humidade ou o frio do solo onde iríamos dormir, e um sabre curto de múltiplas utilizações e objecto indispensável de todo o viajante tibetano (no nosso caso, servia, sobretudo, para rachar lenha), constituíam o único material pesado que conservámos”. Para além disso, levavam escondidos debaixo das roupas relógios, um termómetro, bússolas, mapas, dinheiro, um pequeno revólver e outros objectos que não deviam ser vistos a qualquer custo, sob pena de os denunciarem como estrangeiros. Transportavam ainda alguns víveres e utensílios de cozinha próprios para uma alimentação frugal, à base de ”tsampa” (farinha feita com cevada previamente torrada, que era o alimento principal do país), comida seca misturada com manteiga e uma sopa ocasional.
Alcançada a estrada das peregrinações, o disfarce de “ardjopa” (peregrino que viaja a pé, carregando a sua bagagem) era ideal, pois permitia circular sem atrair a atenção, no meio dos grupos de devotos. “Estes últimos, provenientes muitas vezes de regiões longínquas e pertencendo a tribos diferentes, apresentam uma grande diversidade de tipos: os seus dialectos, bem como os penteados e os trajes das peregrinas, são extremamente variados. Tal circunstância fazia-me esperar que o que quer que a minha fisionomia ou o meu sotaque tivesse de pouco ortodoxo, passaria despercebido no meio daquela gente”, comenta a escritora. No entanto, ultrapassado o desfiladeiro de Dokar, que marcava a fronteira do Tibete proibido, muitas dificuldades e surpresas esperavam os dois aventureiros.

Povo supersticioso

O fascínio de “Viagem ao Tibete” está no relato de um país remoto, isolado e quase parado no tempo. O Tibete do início do século passado era ainda uma sociedade tribal, não formando uma nação com um governo único. Para lá das províncias próximas de Lhasa, as tribos que ocupavam o território viviam independentes, lideradas pelo chefes locais, que se intitulavam como “gyalpos” (reis). O Dalai-Lama era considerado por todos uma personalidade divina, mas muitos dos chefes tribais não acediam à sua pretensão temporal de lhes cobrar impostos.
Os tibetanos eram muito dados a superstições e crenças mágicas, algo que perpassa por todo o livro. Sempre que se cruzava com peregrinos ou aldeões, Yongden era solicitado para predizer o futuro a respeito de assuntos que os preocupavam. Por exemplo, uma mãe insistia em saber o nome do demónio que tinha causado o inchaço nos pés da sua filha, nunca lhe passando pela cabeça que isso se devesse às extenuantes caminhadas que tinham feito durante a peregrinação. Outros perguntavam se David-Néel não era uma “pamo” (uma mulher possuída por deuses, demónios, ou pelos espíritos dos mortos que comunicam pela sua boca) e falavam em “nagspas” (magos muito temidos que têm o poder de mandar os demónios e podem matar qualquer ser, humano ou não, à distância) ou noutras criaturas fantásticas. Quando requisitavam os seus supostos dons de prestidigitador, Yongden “não deixava de intercalar entre os ritos habituais alguns discursos muito simples sobre a verdadeira doutrina budista, esforçando-se assim por sacudir um pouco as crenças supersticiosas profundamente enraizadas no espírito dos seus auditores e acrescentando, sempre que o consultavam a respeito de doenças, bons conselhos no tocante à limpeza e higiene”.
A descrição da beleza paisagística do Tibete é também constante ao longo de toda a obra. Por exemplo, no vale do Nou tchou, “ciprestes alinhavam-se em avenida mística, fechada, ao longe, pela linha turquesa do rio e grandes abetos solitários desenhavam a sua silhueta imponente sobre uma retaguarda de folhagem natural cujo dourado imitava um fundo de mosaico bizantino”. “Um ar de mistério gracioso envolvia todas as coisas”, observa a autora. “Parecia-me andar entre as imagens de um velho livro de lendas e não teria ficado espantada se tivesse surpreendido um conciliábulo de duendes sentados sobre os raios solares, ou atingido o palácio da Bela Adormecida.”

Expedição antropológica

A viagem da francesa e do lama revestiu-se de um carácter antropológico, pois o facto de se apresentarem como pobres peregrinos abria-lhes as portas das casas dos camponeses, permitindo “observar inúmeros pormenores inacessíveis aos viajantes ocidentais e mesmo aos tibetanos das classes superiores. “Iria agora experimentar por mim mesma uma quantidade de coisas que até lá só observara à distância. Sentar-me-ia no chão rugoso da cozinha sobre o qual eram literalmente derramados, todos os dias, a sopa gordurenta, o chá com manteiga e os escarros de uma família numerosa. Excelentes mulheres, cheias de boas intenções, estender-me-iam os dejectos de um pedaço de carne cortado sobre o pano do seu vestido que, durante anos, servira de pano de cozinha e de lenço. Ia ter de comer à maneira dos pobres desgraçados, pondo dentro da sopa e do chá os meus dedos não lavados, para lá misturar a tsampa, e, ainda, aceitar numerosas coisas de que só lembrar-me delas dava-me náuseas”, resume Alexandra David-Néel.
Embora o tentassem evitar a todo o custo, várias vezes se cruzaram na estrada com funcionários que os prenderiam se tivessem suspeitas em relação à sua identidade. Foi o caso de um nobre vindo de Lhasa e rodeado por um séquito de soldados e criados, que, como era habitual, quis saber quem eram e de onde vinham os peregrinos. “E quando tudo foi dito e redito, o “pönpo” ficou estático, continuando a olhar para nós em silêncio, imitado por todo o seu séquito”, conta a autora. “Com a voz chorosa dos mendigos tibetanos, um pouco abafada por aquilo que devia parecer um sentimento de reverência, implorei uma esmola: ‘Nobre senhor, faça a caridade, por favor!’ O barulho interrompeu a concentração dos pensamentos do grupo. Pareceu-me sentir um descansar físico. Os tibetanos tinham modificado os seus olhares investigadores; alguns riam em voz alta. O simpático funcionário tirou da sua bolsa uma moeda e estendeu-a ao meu companheiro: ‘Mãe!’ – exclamou este, fingindo uma alegria extrema – ‘olhe o que nos dá o pönpo.’ Manifestei o meu agradecimento de uma maneira condizente com a personalidade que adoptara. (...) Para terminar a comédia em verdadeiro estilo tibetano, ofereci-lhe – com que alegria secreta – o mais respeitoso dos cumprimentos do país! Deitei-lhe a língua de fora.”
Para além dos obstáculos humanos, ao longo do caminho surgiram várias barreiras físicas, pois muitas das estradas do Tibete não passavam de caminhos de cabras e as pontes eram substituídas por um cabo ligado às duas margens. Para atravessar estas “pontes” de solidez incerta (os acidentes sucediam com frequência), as pessoas, mercadorias ou animais eram suspensos no cabo por um gancho, sendo depois necessário contar com a ajuda de passadores profissionais. David-Néel recorda uma dessas passagens, que remete o leitor moderno para as aventuras de Indiana Jones: “Quando veio a minha vez, fui amarrada, com uma jovem, ao gancho e um empurrão vigoroso mandou-nos, arriadas com a rapidez de um raio, até ao centro do cabo, onde ficámos a baloiçar como duas miseráveis marionetas. Os homens puseram-se então a trabalhar puxando a corda segura no nosso gancho.” Há também descrições de passagens problemáticas por zonas de alta montanha, onde chegaram a passar fome e ficou evidente “a desproporção esmagadora que existia entre a fantástica região dos altos cumes e os débeis viajantes que ousaram aventurar-se neles, sozinhos, em pleno Inverno.”
Após quatro meses de marcha, numa manhã surgiu no horizonte o Potala, residência do Dalai Lama. Era sinal de que tinham chegado a Lhasa, cidade “rodeada por imponentes cordilheiras áridas, que o crepúsculo tinge com colorações maravilhosas”. O perfil da capital era marcado pelo Potala, situado no topo de uma montanha: “Pedestais de construções maciças elevam nos ares um palácio vermelho com telhados de ouro”, relata a escritora, que, antes de partir para visitar outras regiões do país, deambulou pela “Roma tibetana” durante cerca de dois meses, observando a época festiva de passagem do ano, quando cada dia trazia um novo espectáculo, religioso ou profano. De todos eles, destaca a grande procissão chamada “sér pang”: “Nunca, no decorrer das minhas longas viagens, contemplei espectáculo mais maravilhoso. (...) Do sítio onde estava sentada, dominava de alto a sér pang, a multidão multicolor dos tibetanos nos seus fatos de festa e, mais adiante, Lhasa estendida na planície. (...) O sol maravilhoso da Ásia Central iluminava a paisagem, intensificava as cores, fazia irradiar montanhas esbranquiçadas no horizonte. Tudo vibrava, repleto de luz, parecendo prestes a transformar-se em chamas... Um espectáculo inolvidável que, só por si, me teria pago das canseiras que eu suportara para contemplá-lo.»

Texto da minha autoria, inserido no suplemento Fugas (Público), tendo como referência o livro “Viagem ao Tibete”, de Alexandra David-Néel, traduzido por Monique Rutler e editado em Portugal pelo “Círculo de Leitores”, em 1998.

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