29.10.08

NO dia seguinte entrámos no território de Daichine e, novamente, como nas margens do Salouen, fui hóspede de numerosas pessoas de aspectos diferentes. Pena não poder contar uma a uma todas as minhas etapas! Uma noite, não nos fez um aldeão astuto, com todas as aparências da mais cordial honestidade, dormir num quarto assombrado, onde demónios esfomeados se tinham, diziam, instalado? Isto tudo só para ver se sairíamos dali vivos de manhã e se ele podia arriscar voltar a viver ali.”

“Os agrupamentos religiosos do Tibete formam pequenos Estados no Estado, de que são quase inteiramente independentes. Todos possuem terras, rebanhos e, em geral, traficam de uma maneira ou de outra. Os grandes gompas reinam sobre uma extensão considerável de território povoado por rendeiros cuja condição é mais ou menos semelhante à dos servos da Europa da Idade Média. (...) Um grande mosteiro tibetano é uma verdadeira cidade, formada por uma rede de ruas e corredores, de jardins e praças. Templos em maior ou em menor número, as salas das assembleias dos diversos colégios e os palácios dos dignitários erguem, por cima das habitações vulgares, os seus telhados dourados e os seus terraços ornamentados de bandeiras e ornamentos diversos.”

“É certo que eu já sonhara percorrer o misterioso país de Po, assunto de tantas lendas. Era mesmo uma ideia já antiga no meu espírito e já a tinha discutido longamente com Yongden, durante vários anos, quando morávamos no mosteiro de Koum Boum. Todavia, as vagas informações colhidas sobre essa região, junto de mercadores do Tibete Central ou de pessoas do Kham, não deixavam de ser um pouco inquietantes. Muitos faziam crer que os Popas eram canibais. Outros mais moderados reservavam a sua opinião sobre este ponto, mas todos estavam de acordo para afirmar que fosse quem fosse que não pertencesse às tribos popas, e se aventurasse nas florestas habitadas por estes, nunca mais aparecia.”

“Os lamaistas, como a grande maioria dos budistas, são adeptos da cremação, mas faltando a madeira na maior parte do território tibetano, a cremação não deixa de ser uma prática difícil. Quando se trata de eclesiásticos de alto calibre, obvia-se a falta de combustível trocando a fogueira por um enorme caldeirão cheio de manteiga, em que o corpo do defunto é consumido. Quanto à maioria dos tibetanos, os seus cadáveres são geralmente transportados para as montanhas e são frequentemente desmembrados antes de serem abandonados aos abutres e outros animais selvagens.”

“Vamos finalmente poder dormir. Na divisão onde nos permitem, agora, entrar, há, sobre a terra batida, um pedaço de saca velha do tamanho de uma toalha, é o leito que me é reservado. Graças ao seu carácter clerical, Yongden é melhor tratado. Poderá usar um tapete esfarrapado que o preservará até aos joelhos, aproximadamente, do contacto com a terra nua. Quanto às pernas, não nos preocupamos com elas. As gentinhas do Tibete dormem dobradas sobre si próprias, quase numa bola, como os cães, e não possuem tapete ou almofadas do comprimento do seu corpo. Dormir todo esticado é considerado um luxo que só pertence às pessoas de qualidade.”



[As citações acima reproduzidas foram retiradas do livro “Viagem ao Tibete”, de Alexandra David-Néel, traduzido por Monique Rutler e editado pelo “Círculo de Leitores”, em 1998]


Nascida em Paris (1868), Alexandra David-Néel ficará para a história como a primeira mulher europeia a alcançar a Lhasa, contra tudo e contra todos. Na fase inicial da sua vida aventurosa estudou canto e tornou-se numa cantora de ópera, tendo feito diversas digressões. Desenvolveu um interesse pela Ásia e fez longas viagens à Índia e ao Sri Lanka, onde aprendeu o sânscrito e estudou budismo. Na sequência dessas experiências, retirou-se para os Himalaias, onde levou uma vida de eremita entre 1914 e 1916. Depois fez a sua célebre viagem à capital do Tibete, disfarçada de peregrina. Voltou ao país em 1934 e ali viveu durante dez anos, antes de ter que fugir do avanço das tropas japonesas. A sua carreira de escritora foi dedicada à descrição das suas viagens pela Ásia e também à difusão do budismo no ocidente, através de títulos como “O Modernismo Budista”, ou “O Budismo de Buda”. Morreu quando já tinha ultrapassado os 100 anos de idade, em 1969.

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