10.7.08

a modéstia

" já muitos anos que faço de espião acidental no autocarro da linha 24 que sobe a calle Mayor de Gracia, em Barcelona. Tenho em casa um arquivo de gestos, frases e conversas escutadas através do tempo nesse trajecto de autocarro, e creio mesmo que poderia escrever um romance tão íntimo como aquele que Joe Gould queria fazer sobre Nova Iorque, pois roubei e registei todo o tipo de frases soltas, conversas invulgares, situações disparatadas.
Ultimamente, um modesto deliquente, naturalmente, parece ter-se apaixonado por esta linha de autocarro. Chamam-lhe - já é muito conhecido entre alguns passageiros - o ladrão do 24. Quando entra no autocarro, os passageiros que o conhecem avisam os incautos aos gritos:'Cuidado, cuidado, que entrou o ladrão do 24!'
A cena é sempre comovente e tem grandeza e até algo da épica popular, e a mim recorda-me, salvo as devidas diferenças, um filme que vi quando era criança onde as pessoas dos bairros sociais se mobilizavam para apertar o cerco a um assassino de meninas. O ladrão do 24 já foi detido umas quinhentas vezes, mas fica sempre em liberdade e regressa ao autocarro, onde é muito famoso. Não parece interessar-lhe uma linha diferente, nem outro autocarro. Deve apreciar - como acontece comigo - sentir-se um habitual dessa linha, ou talvez o apaixone simplesmente repetir-se. É um pouco parecido comigo: roubamos os dois nessa linha de autocarro. Claro que ele rouba carteiras e eu limito-me a capturar frases, rostos, gestos.
Tenho reunidas no meu arquivo todo o tipo de frases ouvidas, através do tempo, neste autocarro que há anos me conduz do trabalho para casa e vice-versa. Obviamente, há algumas frases que são melhores troféus de caça do que outras. Uma delas é a que ouvi dizer uma certa ocasião a uma mulher que ia sentada atrás de mim na traseira do autocarro: 'Do inglês e do francês recordo-me, mas o suali esqueci-o completamente.' Pareceu-me uma frase muito sofisticada para ser dita na linha 24. Quando me voltei, vi que eram duas freiras que viajavam atrás de mim. Deviam ter vivido as duas em África e isso explicava seguramente tudo, mas a frase ainda hoje continua a parecer-me bastante sofisticada.
Numa outra ocasião, também memorável, um jovem disse de repente a outra, quando desciam, em voz muito alta, muito chateado, e todo o autocarro ficou ao corrente; 'Que seja a última vez que te digo: a minha mãe é a minha mãe. E a tua mãe é tua mãe. Ficamos esclarecidos? Entendeste-me?' Parecia muito grave, o problema entre os dois. Fiquei com vontade de descer com eles e averiguar qual era o drama.
Recordo especialmente entre muitas outras frases ouvidas e anotadas: 'Ofereci-lhe umas magnólias e nunca me perdoou.' E esta outra: 'A felicidade está no martírio.' E esta: 'Se ganhas dinheiro antes dos 40, estás perdido.'
Estão todas anotadas, com a data correspondente. Tenho um dossiê que tomba de tão pesado, uma informação incomensurável sobre o mundo do autocarro da linha 24.
Um dia, escutei uma mulher contar ao marido que a Lua não é o que pensamos: 'Não é um satélite natural da Terra, mas um imenso planetóide oco, desenhado por alguma civilização tecnicamente muito avançada e colocado em órbita à volta da Terra há muitos séculos.' Anotei cuidadosamente tudo isso e também o que lhe disse o marido, que tinha cara de idiota (e também isso anotei, refiro-me à cara de imbecil): 'A Lua é a Lua e mais nada.'
Bonita frase, a do idiota, às vezes digo-a, gosto de a dizer:
- A lua é a lua e mais nada.
Ninguém sabe por que é que eu digo issso, ninguém sabe que tem origem nas minhas escutas de autocarro. A vida no 24 faz parte do meu arquivo mais íntimo. Até ao dia de hoje, tive sempre a impressão de que tudo o que acontecia nessa linha me dizia directamente respeito.
O arquivo - como a minha vida - foi-se tornando grande e complexo. E não é estranho, porque houve sempre, em ambos os campos - autocarro e vida -, uma grande quantidade de coisas para anotar. Houve tantas expressões, tantas frases. No entanto, uma semana atrás, ia concentrado nos meus pensamentos e sem espiar ninguém. Há muitos dias, sobretudo ultimamente, em que, não sei porquê, descanso de tudo isto. Esqueço-me de que sou um ladrão de frases de autocarro. A passada segunda-feira era um desses dias. Mas, de repente, passou-se uma coisa bastante imprevista. Encontrava-me de pé no asfixiante autocarro repleto, ia apoiado distraidamente num dos varões da plataforma central, quando uma mulher que falava ao telemóvel disse atrás de mim:
- Vou descer agora, na estação de Fontana. Tenho 30 anos, mas não sei se os aparento. Não sou bonita nem feia. Levo um casaco comprido cinzento. Bom, depois vemo-nos. Até já.
Viajava de costas para mim, de maneira que não lhe podia ver a cara, a menos que desse dois passos (impossíveis) para me pôr diante dela, ou fizesse um gesto muito forçado com a cabeça mas que, com tanta gente à volta, teria sido pouco natural. Aquele 'não sou bonita nem feia' chegou-me à alma. Era uma frase que tinha ouvido mil vezes, mas agora escutava-a com uma intensidade diferente. Deixou-me completamente preocupado. É possível ser-se realmente algo intermédio? Que podia ter acontecido na vida daquela mulher para que ela mesma se tivesse em tão pouca conta e não tivesse problemas em formulá-lo em voz alta? Gostava de ser modesta? Era-o simplesmente e não adiantava dar mais voltas ao assunto? Ou talvez não fosse ninguém e nem sequer chegava a ser modesta? Pareceu-me desconcertante que alguém se resignasse a tanto cinzento. Vista de costas, era baixa, vestia-se totalmente de conzento e até à cabeleira negra parecia ir ficando cinzenta, levava um saco da Zara, que teria sido um elemento para se identificar mais útil do que aquele 'não sou bonita nem feia'.
Ponderei segui-la quando descesse em Fontana e ver com quem se encontrava, entrar em cheio no começo de um romance real. Mas já estava atrasado para chegar a casa e não tinha tempo para a seguir. Por outro lado, nunca na minha vida seguira alguém na rua e não me via de maneira nenhuma a fazê-lo. O teu espaço é o do autocarro, pensei. E isso ajudou-me a reprimir a minha ideia de descer.
Pensei também no livro de Gérard de Nerval que andava a ler e vei-me à memória comovedora: 'Eu nunca vi a minha mãe. Os seus retratos perderam-se ou foram roubados. Sei somente que se parecia com uma gravura da época, uma gravura da escola de Prudhon ou de Fragonard e que se podia intitular A Modéstia. (...).
Enrique Vila-Matas; Exploradores do Abismo

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