O país nos talões multibanco
"ACONTECE sempre que chegamos ao Multibanco e reparamos que a pessoa antes de nós se esqueceu do talão. Como queremos guardar o nosso próprio talão, precisamos de tirar o outro talão da ranhura da caixa. Mas aqui surge-nos um desses pequenos dilemas do quotidiano que fazem da vida em sociedade uma actividade perigosa. O que fazemos? Pomos de lado aquele pedaço de papel, abstendo-nos de qualquer consulta invasora, ou não resistimos em espreitar o que não nos pertence? Pode ser que o talão mostre um saldo astronómico que nos provoque espanto e cobiça. Ou pode ser que revele informação contraria: contas bancarias que apresentam saldos de tragédia no inicio do mês e as vidas que tentamos imaginar dependentes dessas contas.
Não vale a pena fingir que ninguém anda por ai nas caixas Multibanco a espreitar talões esquecidos. Nada de hipocrisias escusadas. Claro que anda. Quando se trata de espiolhar a vida dos outros, não há muita gente a manter o sangue-frio civilizacional e controlar a curiosidade. Primeiro, a curiosidade não se controla, mesmo que talvez se possa evitar. Segundo, a vida dos outros interessa-nos instintivamente, pelas melhores e piores razões. E, terceiro, há sempre, por mais inofensiva que seja, a experiência do ilícito. Um email para outra pessoa que aterra no nosso portátil; um documento de um colega que transportamos para casa sem o sabermos. Sempre que em situações como estas ultrapassamos a fronteira do socialmente aceitável, e a experiência do ilícito que nos move. Não esta certo, convêm que não o façamos, mas mesmo assim não conseguimos deixar de o fazer. A experiência do ilícito que nos tenta a todos e uma das contradições mais curiosas das nossas sociedades legalistas e sancionatórias. Não há nada que não tenha a sua vastidão de regras e sanções, jurídicas ou morais. Mas toda a gente incumpre o que toda a gente também sanciona.
Parte da vida de um colunista e confessar coisas desagradáveis e, pela minha parte, devo dizer que quase nunca resisto a um talão esquecido numa caixa Multibanco. Espreito-o, analiso-o. O melhor dia para consultar talões Multibanco e o domingo, dia em que os papéis soltos se amontoam nas caixas. Não sou, pois, boa pessoa para trabalhar nos serviços de segurança ou em qualquer instituição que use dados pessoais. Os talões Multibanco oferecem o melhor retrato do estado do país neste momento. Digamos que não costumo frequentar as melhores zonas de Lisboa. Mas verdade que o que tenho visto e muita gente sem dinheiro na conta, muita gente que não sei como e que vive depois do dia 4. Imagino que quem se esquece dos talões Multibanco o faz de propósito, porque depois de um levantamento prefere não saber com quanto ficou. Melhor nem ver e deixar para os que vem a seguir na fila."
Pedro Lomba
(Diário de Notícias)
jurista
pedro_lomba@netcabo.pt
Não vale a pena fingir que ninguém anda por ai nas caixas Multibanco a espreitar talões esquecidos. Nada de hipocrisias escusadas. Claro que anda. Quando se trata de espiolhar a vida dos outros, não há muita gente a manter o sangue-frio civilizacional e controlar a curiosidade. Primeiro, a curiosidade não se controla, mesmo que talvez se possa evitar. Segundo, a vida dos outros interessa-nos instintivamente, pelas melhores e piores razões. E, terceiro, há sempre, por mais inofensiva que seja, a experiência do ilícito. Um email para outra pessoa que aterra no nosso portátil; um documento de um colega que transportamos para casa sem o sabermos. Sempre que em situações como estas ultrapassamos a fronteira do socialmente aceitável, e a experiência do ilícito que nos move. Não esta certo, convêm que não o façamos, mas mesmo assim não conseguimos deixar de o fazer. A experiência do ilícito que nos tenta a todos e uma das contradições mais curiosas das nossas sociedades legalistas e sancionatórias. Não há nada que não tenha a sua vastidão de regras e sanções, jurídicas ou morais. Mas toda a gente incumpre o que toda a gente também sanciona.
Parte da vida de um colunista e confessar coisas desagradáveis e, pela minha parte, devo dizer que quase nunca resisto a um talão esquecido numa caixa Multibanco. Espreito-o, analiso-o. O melhor dia para consultar talões Multibanco e o domingo, dia em que os papéis soltos se amontoam nas caixas. Não sou, pois, boa pessoa para trabalhar nos serviços de segurança ou em qualquer instituição que use dados pessoais. Os talões Multibanco oferecem o melhor retrato do estado do país neste momento. Digamos que não costumo frequentar as melhores zonas de Lisboa. Mas verdade que o que tenho visto e muita gente sem dinheiro na conta, muita gente que não sei como e que vive depois do dia 4. Imagino que quem se esquece dos talões Multibanco o faz de propósito, porque depois de um levantamento prefere não saber com quanto ficou. Melhor nem ver e deixar para os que vem a seguir na fila."
Pedro Lomba
(Diário de Notícias)
jurista
pedro_lomba@netcabo.pt
Etiquetas: Crónica
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