EXCERTOS de
uma excelente entrevista feita pelo Carlos Picassinos ao arquitecto Manuel Vicente, que sabe cantar (no sentido 'milleriano' do termo):
Disse que chegou a Macau com uma grande vontade de trabalhar um “pato bravo”.
Eu cheguei com uma grande vontade de real, para além da convenção da
escola arquitectónica, para além do que o arquitecto devia fazer ou não.
Esta espécie de selvagização, o neologismo não é famoso, do direito de
cidade, como o jazz que ganha direito de cidade quando era uma música
dos excluídos busca uma democratização do estético, do plástico,
artístico. Acabar com essas exclusões do high brow e do low brow. Agora a
cantora de ópera também canta Beatles, entende? Queria alargar a
respiração, pôr o peito ao vento e ao sol e acabar com o espartilhos da
burguesia da idade industrial.
Como é que trabalhou este discurso em Macau?
Procurando o vulgar e encontrando o poético escondido. Olhar sem cair
naquela coisa do ‘ai que horror, os chineses metem grades em todo o
lado!’ Era tentar perceber que havia ali escolhas e era importante
perceber esses sinais com que as pessoas iam configurando o mundo. Mas
isto na Europa… sei lá, o senhor fidalgo das terras do século XVIII
olhava para as aldeias que hoje se vendem aí nos cartazes turísticos
como uma imundície horrível, não valorizava aquilo, nem as próprias
pessoas que lá viviam porque se comparavam com o castelo, não é! Ou
seja, é preciso perceber que há mais mundo do que o que se convenciona
aceitar, ou dignar-se olhar para. Não ficar a olhar para o pitoresco, ou
olhar o pitoresco pelo menos a dizer ‘olhem como este selvagens são
capazes de fazer não sei o quê…”. Achar que toda a expressão de um gosto
ou de uma vontade de configuração é estimável.
Falou também de uma religiosidade no seu trabalho com os materiais, do hibrido…
Há quem diga que eu sou pós-colonial porque já não venho com aquela
postura de colono que quando vai, vai ensinar alguma coisa àqueles
selvagens. Eu tento perceber o que aquelas pessoas sabem, os seus
fantasmas, os seus gostos, o cruzamento de culturas mas nesse sentido…
sei lá, a relação com o sagrado, a obsessão com a morte que os
camponeses têm, a obsessão com o jogo que é a encenação dessa morte, o
jogo da vida, o acaso, a sorte, como aquele filme do [Michael] Cimino “O
Caçador” e a roleta russa que é um ritual muito intenso, como são os
combates de galos das Filipinas. Não é um divertimento, as pessoas levam
aquilo muito a sério.
Mas ainda é possível encontrar essa contemporaneidade ou as mudanças foram tão acentuadas que se perdeu um pouco?
É sempre especial e diferente. Mesmo que seja uma cópia de Las Vegas,
é sempre diferente, e Las Vegas é diferente de Macau. Para mim, nunca
nada está perdido. As pessoas de Macau estão todos os dias a construir
diferenças. Nunca tive nostalgia de Macau. Cheguei em 1962 e havia
aquela Praia Grande, e depois nos anos 70 deitaram aquelas casas abaixo…
É a mesma coisa de quando olhamos para aquelas fotografias de criança
quando tinhamos cabelos loiros, ou quando estamos a fazer músculo na
juventude. Ficamos é com grande estima com o processo da vida. Eu fico
com mais curiosidade do que nojo! Importa mais o esplendor da vida.
Também ninguém gostava dos arranha-céus de Nova Iorque, ou de Chicago, e
depois a geração seguinte incorporou aquilo no seu gosto. Mas aquilo só
podia ser feito na América, nunca na Europa, porque ali havia um
território mais livre, mais desocupado, e isso também fazia as mentes
mais livres, com mais desejos, a realidade não era tão normativa. O que
eu digo é que nos temos deixar penetrar por novos modos de olhar, outras
formas de dizer as coisas. Quer dizer, não se escreve da mesma maneira
depois da literatura americana do Miller, ou do Scott Fitgerald. De
repente, abriu-se o espaço da escrita, e no cinema também foi a mesma
coisa.
(...)
Nestas ausências e presenças, em Macau ou em Lisboa, considera-se um outsider no meio da arquitectura portuguesa?
Sempre achei isso engraçado. Tinha um aluno meu no Técnico que os
pais eram imigrantes açorianos nos Estados Unidos e, por uma razão
qualquer de afecto com Portugal, mandaram-nos estudar um ano no Técnico.
Eu chamava-lhe o luso-português. Realmente, a nossa cultura deve mais
aos luso-portugueses do que aos portugueses. Como o Eça que era um
português exilado, ou o Jorge de Sena, e o próprio Saramago que acabou
lá naquela ilha de Lanzarote, nas Canárias, e o Camões. Este país é
capaz de ser um pouco auto-fágico, pequeno demais, as pessoas
concentram-se em pequenos conflitos e não criam distancias e é preciso
criar distâncias para depois vir mais livre, desafogado, redescobrir as
maravilhas, olhar para a costa atlântica ou para o Alentejo, com um
olhar mais largo, menos cego de conflitualidade, porque aqui é difícil
não estar sempre envolvido num conflito qualquer… Mas Portugal também é
muito cruel em receber os luso-portugueses, como este pobre ministro que
esteve no Canadá. Ninguém lhe perdoa isso! (risos)
E o Manuel Vicente é um luso-português?
Sou, sim. Sou um exemplo muito acabado disso mesmo. É difícil
encaixar-se. É muito irritante. É-se sempre um intruso. É sempre difícil
regressar a Portugal. Há sempre o estigma, ‘este tipo não é dos
nossos’. Em Macau, é o mesmo. Mas esta frequentação do estrangeiro choca
um pouco o indígena. É sempre um pouco segregado por mais simpáticas
que as pessoas sejam. Vive-se sempre no meio de rejeições, que às vezes
são estruturantes, nos pequenos ódios lusitanos de que é feito o nosso
dia-a-dia neste cantinho. Sei lá, é a nossa condição. Mas o mundo também
é ainda muito tribal, de certa maneira.
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